Delia Lerner
Ler e Escrever na Escola: o real, o possível e o necessário
Cap. 1 – Ler e Escrever na escola: o real, o possível e o necessário.
Ensinar a ler e escrever é um desafio que transcende amplamente a alfabetização em sentido estrito.
Participar na cultura escrita supõe apropriar-se de uma tradição de leitura e escrita e isso requer que a escola funcione como uma microcomunidade de leitores e escritores.
O necessário é fazer da escola uma comunidade de escritores que produzem seus próprios textos para mostrar suas idéias, para informar sobre fatos que os destinatários necessitam ou deve conhecer, para iniciar seus leitores a empreender ações que consideram valiosas, para convencê-los da validade dos pontos de vista ou das propostas que tentam promover, para reclamar, para compartilhar com os demais uma bela frase ou um belo escrito, para intrigar ou fazer rir...
Fazer da escola um âmbito onde leitura e escrita sejam práticas vivas e vitais, onde ler e escrever sejam instrumentos poderosos que permitem repensar o mundo e reorganizar o próprio pensamento, onde interpretar e produzir textos sejam direitos legítimos a exercer e responsabilidades que é necessário assumir. O necessário é preservar o sentido do objeto de ensino para o sujeito da aprendizagem.
O real é que levar à prática o necessário é uma tarefa difícil para a escola porque
1- a escolarização das práticas de leitura e de escrita apresenta problemas árduos;
2- os propósitos que se perseguem na escola ao ler e escrever são diferentes dos que orientam a leitura e a escrita fora dela;
3- a inevitável distribuição dos conteúdos no tempo pode levar a parcelar o objeto de ensino;
4- a necessidade institucional de controlar a aprendizagem leva a pôr em primeiro plano somente os aspectos mais acessíveis à avaliação;
5- a maneira como se distribuem os direitos e obrigações entre o professor e os alunos determina quais são os conhecimentos e estratégias que as crianças têm ou não têm oportunidade de exercer e, portanto, quais poderão ou não poderão aprender.
Tensões entre os propósitos escolares e extra-escolares da leitura e da escrita
Na escola, não são “naturais” os propósitos que nós, leitores e escritores, perseguimos habitualmente fora dela: como estão em primeiro plano os propósitos didáticos que são mediatos do ponto de vista dos alunos, porque estão vinculados aos conhecimentos que eles necessitam aprender para utilizá-los em sua vida futura, os propósitos comunicativos – tais como escrever para estabelecer ou manter contato com alguém distante, ou ler para conhecer outro mundo possível e pensar sobre o próprio desde uma nova perspectiva – costumam ser relegados ou excluídos.
Relação saber-duração versus preservação do sentido
No caso da língua escrita, tradicionalmente a distribuição de conteúdos no tempo tem acontecido de forma que, no primeiro ano de escolaridade, exige-se dominar o “código” e, somente no segundo, “compreender e produzir textos breves e simples”; propor, no começo, certas sílabas ou palavras e introduzir outras nas semanas consecutivas, graduando as dificuldades. O ensino se estrutura assim, conforme um eixo temporal único, segundo uma lógica linear, acumulativa e irreversível.
Tal organização do tempo do ensino entra em contradição com o tempo de aprendizagem e com a natureza das práticas de leitura e escrita.
Tensão entre duas necessidades institucionais: ensinar e controlar a aprendizagem
A responsabilidade social assumida pela escola gera uma forte necessidade de controle: a instituição necessita conhecer os resultados de seu funcionamento, necessita avaliar as aprendizagens. Essa necessidade – indubitavelmente legítima – costuma ter conseqüências indesejadas: como se tenta exercer um controle exaustivo sobre a aprendizagem da leitura, se lê somente no marco de situações que permitem ao professor avaliar a compreensão ou a fluência da leitura em voz alta.
O que fazer para preservar na escola o sentido que a leitura e a escrita têm fora dela?
Pode-se formular como conteúdos do ensino não só os saberes lingüísticos como também as tarefas do leitor e do escritor: fazer antecipações sobre o sentido do texto que se está lendo e tentar verifica-las recorrendo à informação visual, discutir diversas interpretações acerca de um mesmo material, comentar o que se leu e compará-lo com outras obras do mesmo ou de outros autores, recomendar livros, contrastar informações provenientes de diversas fontes sobre um tema de interesse, acompanhar um autor preferido, compartilhar a leitura com outros, atrever-se a ler textos difíceis, tomar notas para registrar informações...
É preciso também articular os propósitos didáticos – cujo cumprimento é mais mediato – com propósitos comunicativos que tenham um sentido “atual” para o aluno e tenham correspondência com os que habitualmente orientam a leitura fora da escola.
Cap. 2 – Para transformar o Ensino da Leitura e da Escrita
É importante distinguir as propostas de mudança que são produto da busca rigorosa de soluções para os graves problemas educativos que enfrentamos daquelas que pertencem ao domínio da moda.
A capacitação: condição necessária, mas não suficiente para a mudança na proposta didática.
A capacitação está longe de ser a panacéia universal que tanto gostaríamos de descobrir. Não bastará capacitar os docentes, será imprescindível também estudar quais as condições institucionais para a mudança, quais são os aspectos de nossa proposta que têm mais possibilidade de ser acolhidos pela escola e quais requerem a construção de esquemas prévios para serem assimilados.
Acerca da transposição didática: a leitura e a escrita como objetos de ensino
O primeiro aspecto que deve ser analisado é o abismo que separa a prática escolar da prática social da leitura e da escrita. (...) Na sala de aula, espera-se que as crianças produzam textos num só tempo muito breve e escrevam diretamente a versão final, enquanto que fora dela produzir um texto é um longo processo que requer muitos rascunhos e reiteradas revisões. Ler é uma tarefa orientada por propósitos na nossa vida social. No âmbito escolar, se lê somente para aprender a ler e se escreve somente para aprender a escrever...
O fenômeno da transposição didática afeta todos aqueles saberes que ingressam na escola para serem ensinados e aprendidos.
Não é a mesma coisa aprender algo – a ler e escrever, por exemplo – na instituição escola ou a instituição família. Todo saber e toda competência estão modelados pelo aqui e agora da situação institucional em que se produzem. Ao se transformar em objeto de ensino, o saber ou a prática a ensinar se modifica: é necessário selecionar-se algumas questões em vez de outras,
Tanto a língua escrita como a prática da leitura e da escrita se tornam fragmentárias, são detalhadas de tal modo que perde sua identidade.
Fragmentar assim os objetos a ensinar permite alimentar duas ilusões muito arraigadas na tradição escolar: contornar a complexidade dos objetos de conhecimento reduzindo-os a seus elementos mais simples e exercer um controle estrito sobre a aprendizagem lamentavelmente a simplificação faz desaparecer o objeto que se pretende ensinar.
A transposição didática é inevitável, mas deve ser rigorosamente controlada
Acerca do “contrato didático”
O “contrato didático” compromete não apenas o professor e os alunos como também o saber, já que este último sofre modificações ao ser comunicado, ao ingressar na relação didática. A distribuição de direitos e responsabilidades entre o professor e os alunos adquire características específicas em relação a cada conteúdo.
Se, por outro lado, o aluno tem a obrigação de escrever diretamente a versão final dos poucos textos que elabora, se não tem direito a apagar, nem a riscar, nem a fazer rascunhos sucessivos; se também não tem direito a revisar e corrigir o que escreveu, porque a função de correção é desempenhada exclusivamente pelo professor, então como poderá ser um praticante autônomo e competente da escrita?
Ferramentas para transformar o ensino
Devem ser levadas em conta – as seguintes questões:
1 – A necessidade de estabelecer objetivos por ciclo – ao atenuar a tirania do tempo didático, torna-se possível evitar – ou pelo menos reduzir ao mínimo – a fragmentação do conhecimento e abordar então o objeto de conhecimento em toda a sua complexidade.
2 – A importância de atribuir aos objetivos gerais, prioridade absoluta sobre os objetivos específicos – a ação educativa deve estar permanentemente orientada pelos propósitos essenciais que lhe dão sentido, é necessário evitar que estes fiquem ocultos atrás de uma longa lista de objetivos específicos, que, em muitos casos, estão desconectados tanto entre si como dos objetivos gerais dos quais deveriam depender.
3 – A necessidade de evitar o estabelecimento de uma correspondência termo a termo entre objetivos e atividades, correspondência que leva certamente ao parcelamento da língua escrita e à fragmentação indevida de atos tão complexos como a leitura e a escrita.
4 – A necessidade de superar a tradicional separação entre “alfabetização em sentido estrito” e “alfabetização em sentido amplo” ou entre “apropriação do sistema de escrita” e “desenvolvimento da leitura e da escrita”. Essa separação é um dos fatores responsáveis pelo fato da educação no ensino fundamental centrar-se na sonorização desvinculada do significado, e da compreensão do texto ser exigida nos níveis posteriores de ensino. Sabemos que o significado não é um subproduto da oralização, mas o guia que orienta a seleção da informação visual; sabemos que as crianças reelaboram simultaneamente o sistema de escrita e a “linguagem que se escreve”.
- reformular a concepção do objeto de ensino em função das contribuições lingüísticas e a concepção do sujeito que aprende a ler e a escrever, de acordo com as contribuições psicolingüísticas desde uma perspectiva construtivista;
- promover o trabalho em equipe, superando o isolamento no qual costumam trabalhar os professores;
-elaborar projetos institucionais –apelo à participação dos pais;
- definir modificações que desterrem o mito da homogeneidade e o substituam pela aceitação da diversidade cultural e individual dos alunos – evitar a formação de “grupos homogêneos” ou “grupos de recuperação”, que só servem para incrementar a discriminação escolar.
Cap. 3 – Apontamentos a partir da Perspectiva Curricular
Algumas idéias essenciais à Perspectiva curricular:
1 – Todos os problemas que se enfrentam na produção curricular são problemas didáticos. Os saberes das outras disciplinas – em particular os da lingüística, que estuda o objeto, e os da psicolingüística, que estuda a elaboração do conhecimento lingüístico por parte do sujeito – estão indubitavelmente presentes, mas intervêm apenas articulando-se para compreender melhor os problemas didáticos.
2 – Quando se propõe uma transformação didática, é necessário levar em conta a natureza da instituição que a realizará e as pressões e restrições que lhe são inerentes, derivadas da função social que lhe foi atribuída.
3 – O problema didático fundamental que devemos enfrentar é o da preservação do sentido do saber ou das práticas que se estão ensinando. Em relação ao projeto curricular, preservar o sentido do objeto do ensino – da leitura e da escrita, neste caso.
Construir o objeto de ensino
Decidir quais serão os conteúdos que devem ser ensinados implica em se fazer uma verdadeira reconstrução do objeto. Trata-se de um primeiro nível de transposição didática: a passagem dos saberes cientificamente produzidos ou das práticas socialmente realizadas para os objetos ou práticas a ensinar. Vejamos em que sentido essa passagem supõe uma construção:
1 – selecionar é imprescindível, porque é impossível ensinar tudo; mas, ao selecionar determinados conteúdos, nós os separamos do contexto da ciência ou da realidade em que estão imersos e, nessa medida, eles são transformados e reelaborados.
2 – por outro lado, toda seleção supõe ao mesmo tempo uma hierarquização.
Em que se basear para fazer as escolhas dos conteúdos? Pode-se afirmar que o grande propósito educativo do ensino da leitura e da escrita no curso da educação obrigatória é o de incorporar as crianças à comunidade de leitores e escritores. O objeto de ensino deve-se então se definir tomando como referência fundamental as práticas sociais de leitura e de escrita. Sustentar isso é muito diferente de sustentar que o objeto de ensino é a língua escrita: ao pôr em primeiro plano as práticas, o objeto de ensino inclui a língua, mas não se reduz a ela.
O modelo “ensinar a ler para ensinar a língua” se expressava fundamentalmente na utilização de “textos escolhidos”, que eram utilizados como ponto de partida para exercícios gramaticais ou ortográficos.
Ainda hoje em dia é freqüente que se selecionem os aspectos descritivos e normativos como eixo do ensino da língua. Está sendo dada uma grande ênfase aos textos como tais ou, melhor dizendo, nas superestruturas textuais como tais, e está se correndo o risco de que esses conteúdos se desvinculem da leitura e da escrita, separem-se das ações e situações em cujo contexto tem sentido.
A definição dos formatos textuais – características superestruturais - ocupa um lugar de importância na maioria dos livros-texto recentes. Um dos motivos é a tendência da instituição escolar ter grande inclinação para as classificações. O risco que se corre ao dar tanta importância a essa questão é o seguinte: embora manejar as características superestruturais ajude, por exemplo, a fazer antecipações ajustadas ao gênero, isso não é suficiente para resolver a multiplicidade de problemas envolvidos na construção ou na compreensão de cada texto.
Definir como objeto de ensino as práticas sociais de leitura e de escrita supõe dar ênfase aos propósitos da leitura e da escrita em distintas situações – razões que levam as pessoas a ler e escrever.
Sustentar que o objeto de ensino se constrói tomando como referência fundamental a prática social da leitura e da escrita supõe, então, incluir os textos, mas não reduzir o objeto de ensino a eles.
Como o mostrou a teoria crítica de currículo – decidir quais aspectos do objeto são mostrados supõe também decidir quais são ocultados; decidir o que é que se ensina significa, ao mesmo tempo e necessariamente, decidir o que é que não se ensina.
Caracterizar o objeto de referência: as práticas de leitura e escrita
As análises históricas revelaram que as práticas de leitura parecem ter sido em primeiro lugar, intensivas, para depois se transformarem, pouco a pouco, em extensivas.
Isto quer dizer que originalmente se liam uns poucos textos de maneira muito intensa, profunda e reiterada, e depois houve uma mudança para outra maneira de ler, que abarca uma enorme quantidade de textos e opera de maneira mais rápida e superficial. As duas modalidades costumam existir em uma mesma sociedade.
Uma pode predominar sobre a outra e podem distribuir-se de maneira diferente em função dos grupos sociais. Nos setores mais abastados, as práticas tendem a ser mais extensivas, enquanto que as práticas intensivas perduraram por muito tempo nos grupos populares.
Com relação à dimensão público-privado, embora na atualidade a leitura tenda a ser mais privada, persistem, no entanto, muitas situações de leitura pública: políticos lêem seus discursos, nos grupos de estudo há a leitura compartilhada, etc.
Explicitar conteúdos envolvidos nas práticas
A que se deve essa distância entre o que se tenta fazer e o que efetivamente se faz? Entre as razões que a explicam, há uma que é fundamental considerar ao planejar um currículo: não é suficiente – da perspectiva do papel docente – reconhecer que se aprende a ler, lendo e que se aprende a escrever, escrevendo. É imprescindível, além disso, esclarecer o que é que se aprende quando se lê ou se escreve em aula, quais são os conteúdos que se estão ensinando e aprendendo ao ler ou ao escrever.
Determinar um lugar importante para o que os leitores fazem, supõe conceber como conteúdos fundamentais do ensino os comportamentos do leitor, os comportamentos do escritor.
Consideram-se assim duas dimensões: por um lado, a dimensão social – interpessoal, pública, e, por outro lado, uma dimensão psicológica – pessoal, privada.
Entre os comportamentos do leitor, que implicam interações com outras pessoas acerca dos textos, encontram-se, por exemplo, as seguintes: comentar ou recomendar o que leu, compartilhar a leitura, confrontar com outros leitores as interpretações geradas por um livro ou notícia, discutir sobre as intenções implícitas nas manchetes de certo jornal.
Entre os mais privados, por outro lado, encontram-se comportamentos como antecipar o que segue no texto, reler um fragmento anterior para verificar o que se compreendeu, quando se detecta uma incongruência, saltar o que não se entende ou não interessa e avançar para compreender melhor, identificar-se com o autor ou distanciar-se dela assumindo uma posição crítica, adequar a modalidade de leitura – exploratória, exaustiva, pausada ou rápida, cuidadosa ou descompromissada... – aos propósitos que se perseguem e ao texto que se está lendo...
Planejar, textualizar, revisar mais de uma vez... são os grandes comportamentos do escritor, que não são observáveis exteriormente e que acontecem, em geral em particular. É necessário ainda que o escritor considere os prováveis conhecimentos dos destinatários.
Podemos estabelecer que:
1 – Os comportamentos do leitor e do escritor são conteúdos – e não tarefas, como se poderia acreditar;
2 – O conceito de “comportamentos do leitor e do escritor” não coincide com o de “conteúdos procedimentais”. Enquanto estes últimos se definem por contraposição com os conteúdos “conceituais” e “atitudinais”, pensar em “comportamentos” como instâncias constituintes de práticas de leitura e escrita.
Preservar o sentido dos conteúdos
Um primeiro risco é o de cair na tentação de transmitir verbalmente às crianças os conteúdos de comportamento leitor e escritor. É útil distinguir conteúdos em ação e conteúdos objeto de reflexão. Um conteúdo está em ação cada vez que é posto em jogo pelo professor ou pelos alunos ao lerem ou ao escreverem, e é objeto de ensino e de aprendizagem mesmo quando não seja objeto de nenhuma explicação verbal.;,
Exemplo: ler notícias com freqüência permitirá às crianças tanto se familiarizarem com esse tipo de texto como adequar cada vez mais a modalidade de leitura a suas características e, nessas situações,
A necessidade de refletir sobre ele pode apresentar-se quando algum membro do grupo necessite ajuda para progredir em sua maneira de ler notícias.
O segundo risco que se corre ao explicitar os comportamentos do leitor e do escritor é o de produzir um novo parcelamento do objeto de ensino. A leitura e a escrita são atos globais e indivisíveis e que somente é possível se apropriar dos comportamentos que as constituem no quadro de situações semelhantes às que têm lugar fora da escola, orientadas em direção a propósitos para cuja realização é relevante ler e escrever.
O terceiro risco: acreditar que é suficiente abrir as portas da escola para que a leitura e a escrita entrem nela e funcionem tal como fazem em outros ambientes sociais. Na escola a leitura e a escrita existem enquanto objetos de ensino.
Cap. 4 – É possível ler na escola?
Há discrepâncias entre a versão social e a versão escolar da leitura: por que a leitura – tão útil na vida real para cumprir diversos propósitos – aparece na escola como uma atividade gratuita, cujo único objetivo é aprender a ler? Por que se ensina uma única maneira de ler – linearmente, palavra por palavra, desde a primeira até a última que se encontra no texto; por que se enfatiza tanto a leitura oral – que não é muito freqüente em outros contextos – e tão pouca a leitura para si mesmo?
Por que se usam textos específicos para ensinar, diferentes dos que se lêem fora da escola? Por que se espera que a leitura reproduza com exatidão o que literalmente está escrito, se os leitores que se concentram na construção de um significado para o texto evitam perder tempo em identificar cada uma das palavras que nele figuram e costumam substituí-las por expressões sinônimas?
Por que se supõe na escola que existe uma só interpretação correta de cada texto (e consequentemente se avalia), quando a experiência de todo leitor mostra tantas discussões originadas nas diversas interpretações possíveis de um artigo ou de um romance?
A leitura aparece desgarrada dos propósitos que lhe dão sentido no uso social, porque a construção do sentido não é considerada como uma condição necessária para a aprendizagem.
Por que se ensina uma única maneira de ler? Esta é, em primeiro lugar, uma conseqüência imediata da ausência de propósitos que orientem a leitura.
O predomínio da leitura em voz alta deriva indubitavelmente de uma concepção da aprendizagem que põe em primeiro plano as manifestações externas da atividade intelectual, deixando de lado os processos subjacentes que as tornam possíveis.
O uso de textos especialmente projetados para o ensino da leitura é apenas uma das manifestações de um postulado básico da concepção vigente na escola: o processo de aprendizagem evolui do “simples” para o “complexo”.
Finalmente, o reconhecimento de uma única interpretação válida para cada texto é consistente com uma postura segundo a qual o significado está no texto.
Gestão do tempo, apresentação dos conteúdos e organização das atividades.
O tempo é – todos nós, professores, sabemos muito bem – um fator de peso na instituição escola: sempre é escasso em relação à quantidade de conteúdos fixados no programa, nunca é suficiente para comunicar às crianças tudo o que desejaríamos ensinar em cada ano escolar. Não se trata somente de produzir uma mudança qualitativa na utilização do tempo didático.
Duas condições são necessárias: manejar com flexibilidade a duração das situações didáticas e tornar possível a retomada dos próprios conteúdos em diferentes oportunidades e a partir de perspectivas diversas. Criar essas condições requer pôr em ação diferentes modalidades organizativas:
1 - Os projetos – permitem uma organização muito flexível do tempo: segundo o objetivo que se persiga, pode ocupar somente uns dias, ou se desenvolver ao longo de vários meses. Os projetos de longa duração proporcionam a oportunidade de compartilhar com os alunos o planejamento da tarefa e sua distribuição no tempo: uma vez fixada a data em que o produto final de vê estar elaborado.
2- As atividades habituais – se reiteram de forma sistemática e previsível uma vez por semana ou por quinzena, durante vários meses ou ao longo de todo ano escolar, oferecem a oportunidade de interagir intensamente com um gênero determinado em cada ano da escolaridade e são particularmente apropriadas para comunicar certos aspectos do comportamento leitor.
3 – As seqüências de atividades – ao contrário dos projetos, que se orientam para a elaboração de um produto tangível, as seqüências didáticas incluem situações de leitura cujo único propósito explícito – compartilhado com as crianças é ler. Ao contrário das atividades habituais, essas seqüências têm uma duração limitada a algumas semanas de aula, o que permite realizar várias delas no curso de um ano letivo e se tem, assim, acesso a diferentes gêneros.
4 – As situações independentes podem classificar-se em dois subgrupos:
a) Situações ocasionais – Por exemplo - em algumas oportunidades, a professora encontra uma texto que considera valioso compartilhar com as crianças, embora pertença a um gênero, ou trate de um tema que não tem correspondência com as atividades que estão realizando nesse momento;
b) Situações de sistematização – Guardam sempre uma relação direta com os propósitos didáticos que estão sendo trabalhados, porque permitem justamente sistematizar os conhecimentos lingüísticos construídos através das outras modalidades organizativas.
Acerca do controle: avaliar a leitura e ensinar a ler
A prioridade da avaliação deve determinar onde começa a prioridade do ensino. Quando a necessidade de avaliar predomina sobre os objetivos didáticos, quando – como acontece no ensino usual da leitura – a exigência de controlar a aprendizagem se erige em critério de seleção e hierarquização dos conteúdos, produz-se uma redução no objeto de ensino.
Saber que o conhecimento é provisório, que os erros não se “fixam” e que tudo o que se aprende é objeto de sucessivas reorganizações permite aceitar, com maior serenidade, a impossibilidade de controlar tudo.
É necessário que a avaliação deixe de ser uma função privativa do professor, porque formar leitores autônomos significa, entre outras coisas, capacitar os alunos para decidir quando sua interpretação é correta e quando não o é, para estar atentos à coerência do sentido que vão construindo.
Para comunicar às crianças os comportamentos que são típicos do leitor, é necessário que o professor os encarne na sala de aula, que proporcione a oportunidade a seus alunos de participar em atos de leitura que ele está realizando, que trave com eles uma relação de “leitor para leitor”.
Cap. 5 – O papel do conhecimento didático na formação do professor
O conhecimento didático como eixo do processo de capacitação
Coordenar as perspectivas dos participantes de uma situação decapacitação está longe de ser simples. Os professores insistentemente nos faziam perguntas ou pedidos como estes: “Explique-nos melhor como é a atividade que tem que ser feita para que as crianças aprendam este conteúdo específico”, “qual destas atividades tem que ser feita primeiro e qual depois?”, “qual é a intervenção mais adequada, se as crianças cometem determinado erro?... Quando muitos professores apresentam os mesmos problemas, o mínimo que tem que fazer o capacitador é se perguntar por que os apresentam e tentar entender quais são e em que consistem os problemas que estão enfrentando.
As situações de “dupla conceitualização”
Possuem particular interesse as atividades que perseguem um duplo objetivo: conseguir, por um lado, que os professores construam conhecimentos sobre um objeto de ensino e, por outro lado, que elaborem conhecimentos referentes às condições didáticas necessárias para que seus alunos possam apropriar-se desse objeto.
A atividade na aula como objeto de análise
Centrar-se no conhecimento didático supõe necessariamente incluir a aula no processo de capacitação, pôr em primeiro plano o que ocorre realmente na classe, estudar o funcionamento do ensino e da aprendizagem escolar da leitura e da escrita. Para cumprir esse requisito, um instrumento é essencial: o registro de classe.
Sobre o registro de classe podemos apontar:
3 – Levar em conta as possibilidades e limitações dos registros de classe permite ampliar seu papel no processo de capacitação. Os registros não são transparentes, nem são auto-suficientes para pôr em evidência os conteúdos que se quer comunicar através da sua análise. É necessário pôr em relevo aquilo que será reproduzível, que pode ser válido para outras aplicações. É preciso levar em conta que alguns aspectos fundamentais da situação são invisíveis – por exemplo, as conceitualizações do professor acerca do conteúdo que está ensinando, nem as idéias que sustentam as decisões que toma no transcurso da aula, nem as hipóteses que estão por trás do que as crianças dizem.
Por último, é importante levar em conta que o registro de classe é realizado em geral por uma pessoa alheia ao grupo e que é comum aparecerem indícios da influência que essa presença tem no desenvolvimento da situação.
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