Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e nãoAÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE
de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva,
alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele.
e outros escritos
Coleção: O MUNDO, HOJE
Vol. 10
Ficha Catalográfica
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)
Freire, Paulo
F934a Ação cultural para a liberdade. 5ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra.
1981.
149 p. 21cm (O Mundo, Hoje, v. 10)
Bibliografia
1. Alfabetização. 2. Educação de adultos. 3. Educação de adultos –
Teoria, métodos etc. I. Títulos. Il. Série.
CDD – 374
374.02
379.24
76-0068 CDU – 371.3:374.7+376.76
EDITORA PAZ E TERRA
Conselho Editorial:
Antonio Candido
Celso Furtado
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
Paulo Freire
AÇÃO
CULTURAL
PARA A
LIBERDADE
E OUTROS ESCRITOS
5ª Edição
Paz e Terra
Copyright Paulo Freire
Capa e digramação: Sheila Santos
Direitos adquiridos pela
EDITORA PAZ E TERRA S.A.
Rua André Cavalcanti, 86
Fátima – Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 244-0448
Rua Carijós, 128
Lapa – São Paulo, SP
Tel.: 263-9539
1981
________________
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário
7 Breve explicação
8 Considerações em torno do ato de estudar
11 A alfabetização de adultos – crítica de sua visão ingênua compreensão de sua
visão crítica
20 Os camponenes e seus textos de leitura
26 Ação cultural e reforma agrária
31 O papel do trabalhador social no processo de mudança
35 Ação cultural para a libertação
35 I parte: O processo de alfabetização de adultos como ação cultural para a
libertação
53 II parte: Ação cultural e conscientização
71 O processo de alfabetização política – uma introdução
78 Algumas notas sobre humanização e suas implicações pedagógicas
95 O papel educativo das Igrejas na América Latina
104 Prefácio à edição argentina de A black theology of liberation de James Cone
107 Conscientização e libertação: uma conversa com Paulo Freire
116 Algumas notas sobre conscientização
Breve explicação
Depois de um longo período de hesitação, resolvi, afinal, juntar neste volume alguns
dos textos que escrevi entre 1968 e 1974. Textos entre os quais somente uns poucos
têm sido mais amplamente divulgados, sobretudo em inglês e espanhol.
Tendo sido, com raras exceções, preparados para seminários, a intenção básica ao
redigi-los era a de provocar uma discussão em cujo processo se aprofundasse a
análise de alguns de seus aspectos principais.
Juntamente com Extensão ou Comunicação, publicado no Brasil em 1970, por Paz e
Terra, alguns deles talvez aclarem certos possíveis vazios entre Educação como
Prática da Liberdade e Pedagogia do Oprimido.
Pretendendo preservá-los como os escrevi, não me furtei, contudo, a alterar um ou
outro, na forma como no conteúdo.
Espero, finalmente, que o fato de estar constantemente voltando a certos núcleos
temáticos, não só em trabalhos diferentes, mas também num mesmo texto, não
chegue a cansar demasiado o leitor. Esta é, em última análise, a minha maneira de
escrever sobre o que penso e de pensar sobre o que faço.
PAULO FREIRE
Genebra
Outono de 1975.
Considerações em torno do ato de estudar1
Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de
atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou
naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou se a
bibliografia, em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então, a intenção
fundamental referida.
A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das
escrivaninhas.
Esta intenção fundamental de quem faz a bibliografia lhe exige um triplo respeito: a
quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não
pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a
sugere deve saber o que está sugerindo e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez,
deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio
que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não
a lê-los por alto, como se os folheasse, apenas.
Estudar é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura critica,
sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”não estimula. Pelo contrário, sua
tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito
investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face
do texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros
fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se
torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras
situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas sua
memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a
memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-la, terá respondido ao
desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente
desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua
significação profunda.
Esta postura critica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a
ele se dedica:
a) Que assuma o papel de sujeito deste ato.
Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se. põe em face do
texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma
força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticadamente”, procurando
1Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à relação.bibliográfica que foi proposta aos participantes de
um seminário nacional sobre educação e reforma agrária.
Sobre "educação bancária”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1977, 4ª ed., (N.E.)
apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o
autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele
retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É
perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as
relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões afins do conhecimento.
Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não
de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva,
alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele.
A atitude critica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da
realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a
razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quanto, na medida em que dele se tenha uma
visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro
para esta delimitação aclara a significação de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em interação,
constituem sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático,
nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender
também ao quadro referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho
que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e
que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível
relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise
do texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se
encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em
questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem,
evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve separá -lo de
seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha com um título que o identifique com o
objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se,
imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece,
ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam
aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de revista implica
não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa
sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de
predisposição à busca.
b) Que o ato de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitortexto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo.
Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade
concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é
também e sobretudo pensar a prática e pensar a prática é a melhor maneira de
pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em
suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A
de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, do que resulta um
aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma
certa prática; durante as simples conversações. O registro das idéias que se têm e
pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando se caminha só por uma rua.
Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de “fichas de idéias”.
Estas idéias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios
que devem ser respondidos por quem as registra.
Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam,
estas idéias os remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para
seguir em sua reflexão.
c) Que o estudo de um tema especifico exige do estudante que se ponha, tanto
quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua
inquietude.
d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja
mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na
percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem
sempre o mesmo do leitor.
e) Que o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude
critica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, às vezes grandes, para
penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e critico, sabe que o texto,
na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de
resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se
para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um
livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe, pelo contrário, a insistência na
busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de
presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se mede o estudo pelo numero de páginas lidas numa noite ou pela quantidade
de livros lidos num semestre.
Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las.
Wright Mills – The Sociological Imagination.
A alfabetização de adultos
– critica de sua visão ingênua;
compreensão de sua visão crítica
Santiago, 1968.
A concepção, na melhor das hipóteses, ingênuado analfabetismo o encara ora como
uma “erva daninha” – daí a expressão corrente: “erradicação do analfabetismo” –, ora
como uma “enfermidade” que passa de um a outro, quase por contágio, ora como
uma “chaga” deprimente a ser “curada” e cujos índices, estampados nas estatísticas
de organismos internacionais, dizem mal dos níveis de “civilização” de certas
sociedades. Mais ainda, o analfabetismo aparece também, nesta visão ingênua ou
astuta, como a manifestação da “incapacidade” do povo, de sua “pouca inteligência”,
de sua “proverbial preguiça”.
Limitada na compreensão do problema, cuja complexidade não capta ou esconde,
suas respostas a ele são de caráter mecanicista.
A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de “depositar” palavras, sílabas e
letras nos alfabetizandos. Este “depósito” é suficiente para que os alfabetizandos
comecem a “afirmar-se”, uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um
sentido mágico.
Escrita e lida, a palavra é como se fosse um amuleto, algo justaposto ao homem que
não a diz, mas simplesmente a repete. Palavra quase sempre sem relação com o
mundo e com as coisas que nomeia.
Daí que, para esta concepção distorcida da palavra, a alfabetização se transforme em
um ato pelo qual o chamado alfabetizador vai “enchendo” o alfabetizando com suas
palavras. A significação mágica emprestada à palavra se alonga noutra ingenuidade:
a do messianismo. O analfabeto é um “homem perdido”. É preciso, então, “salvá-lo” e
sua “salvação” está em que consinta em ir sendo "enchido” por estas palavras, meros
sons milagrosos, que lhe são presenteadas ou impostas pelo alfabetizador que, às
vezes, é um agente inconsciente dos responsáveis pela política da campanha.
As cartilhas, por boas que sejam, do ponto de vista metodológico ou sociológico, não
podem escapar, porém, a uma espécie de "pecado original”, enquanto são o
instrumento através do qual se vão “depositando” as palavras do educador, como
também seus textos, nos alfabetizandos. E por limitar-lhes o poder de expressão, de
criatividade, são instrumentos domesticadores.
De modo geral, elaboradas de acordo com a concepção mecanicista e mágicomessiânica
da “palavra-depósito”, da “palavra-som”, seu objetivo máximo é
realmente fazer uma espécie de “transfusão” na qual a palavra do educador é o
Quando digo “concepção, na melhor das hipóteses, ingênua”, é porque muitos dos que poderiam ser
considerados como ingênuos, ao expressá-la, são, na verdade, astutos. Sabem muito bem o que fazem e onde
querem ir, quando, em campanhas de alfabetização, “alimentam” os alfabetizandos de “slogans” alienadores,
em nome, ainda, da neutralidade da educação. Objetivamente, porém, se identificam ambos – ingênuos e
astutos.
“sangue salvador” do “analfabeto enfermo". E ainda quando as palavras das cartilhas,
os textos com elas elaborados – e isto raras vezes ocorre – coincidem com a realidade
existencial dos alfabetizandos, de qualquer maneira, são palavras e textos
presenteados, como clic hês, e não criados por aqueles que deve-riam fazê-lo.
Em geral, porém, tanto as palavras quanto os textos das cartilhas nada têm que ver
com a experiência existencial dos alfabetizandos. E .quando o têm, se esgota esta
relação ao ser expressada de maneira paternalista, do que resulta serem tratados os
adultos de uma forma que não ousamos sequer chamar de infantil.
Este modo de tratar os adultos analfabetos implícita uma deformada maneira de vêlos
– como se eles fossem totalmente diferentes dos demais. Não se lhes reconhece a
experiência existencial bem como o acúmulo de conhecimentos que esta experiência
lhes deu e continua dando.
Como seres passivos e dóceis, pois que assim são vistos e assim são tratados, os
alfabetizandos devem ir recebendo aquela “transfusão” alienante da qual, por isto
mesmo, não pode resultar nenhuma contribuição ao processo de transformação da
realidade.
Que significação pode ter para alguém um texto que, além de co-locar uma questão
absurda, dá uma resposta não menos absurda: “Ada deu o dedo ao urubu? Duvido,
responde o autor da pergunta, Ada deu o dedo à ave”!
Em primeiro lugar, não sabemos da existência de nenhum lugar no mundo em que
alguém convide o urubu a pousar em seu dedo. Em segundo lugar, ao responder o
autor à sua estranha pergunta, duvidando de que Ada tivesse dado seu dedo ao
urubu, pois que o deu à ave, afirma que urubu não é ave.
Que significação, na verdade, podem ter, para homens e mulheres, camponeses ou
urbanos, que passam um dia duro de trabalho ou, mais duro ainda, sem trabalho,
textos como estes, que devem ser memorizados: “A asa é da ave”; “Eva viu a uva;
“João já sabe ler. Vejam a alegria em sua face. João agora vai conseguir um
emprego”!
Textos, de modo geral, ilustrados – casinhas simpáticas, acolhedoras, bem
decoradas; casais risonhos, de faces delicadas, às vezes ou quase sempre brancos e
louros; crianças bem nutridas, bolsinha a tira-colo, dizendo adeus aos papais para ir à
escola, depois de um suculento café da manhã...
Que podem um trabalhador camponês ou um trabalhador urbano retirar de positivo
para seu quefazer no mundo, para compreender, criticamente, a situação concreta de
opressão em que se acham, através de um trabalho de alfabetização em que se lhes
diz, adocicadamente, que a “asa é da ave” ou que “Eva viu a uva”?
Reforçando o “silêncio” em que se acham as massas populares dominadas pela
prescrição de uma palavra veiculadora de uma ideologia da acomodação, não pode
Pequenos textos de leitura podem e devem ser elaborados pelos educadores, desde que I) correspondam à
realidade concreta dos alfabetizandos; II) sejam usados não na forma tradicional das chamadas "classes de
leitura", mas em verdadeiros seminários de textos; Ill) funcionem como elementos motivadores aos
alfabetizandos para que comecem eles mesmos a redigir também seus textos.
jamais um tal trabalho constituir-se como um instrumento auxiliar da transformação
da realidade.
Mas, por outro lado, na medida em que, em si mesma, esta alfabetização não tem a
força necessária para concretizar pelo menos algumas das ilusões que veicula, como
por exemplo a de que o “analfabeto que aprende a ler consegue um emprego”, cedo
ou tarde termina por funcionar contra os objetivos amaciadores do próprio sistema,
cuja ideologia ela reproduz.
Na proporção em que os ex-analfabetos, que foram “treinados” na leitura de textos
sem a análise de sua vinculação com o contexto social, já agora lendo, mesmo
mecanicamente, procuram o emprego ou o melhor emprego e não os encontram,
percebem a falácia daquela afirmação irresponsável.
O feitiço, então, mais uma vez, cai sobre o feiticeiro...
Para a concepção critica, o analfabetismo nem é uma “chaga”, nem uma “erva
daninha” a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das
expressões concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema
estritamente lingüístico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político,
como a alfabetização através da qual se pretende superá-lo. Proclamar sua
neutralidade, ingênua ou astutamente, não afeta em nada a sua politicidade
intrínseca.
Por esta razão é que, para a concepção critica da alfabetização, não será a partir da
mera repetição mecânica de pa-pe-pi-po-pu, la-le-li-lo-lu, que permitem formar pula,
pêlo, lá, li, pulo, lapa, lapela, pílula etc. que se desenvolverá nos alfabetizandos a
consciência de seus direitos, como sua inserção critica na realidade. Pelo contrário, a
alfabetização nesta perspectiva, que não pode ser a das classes dominantes, se
instaura como um processo de busca, de criação, em que os alfabetizandos são
desafiados a perceber a significação profunda da linguagem e da palavra. Palavra
que, na situação concreta em que se encontram, lhes está sendo negada. No fundo,
negar a palavra implica em algo mais. Implica em negar o direito de “pronunciar o
mundo”. Por isto, “dizer a palavra” não é repetir uma palavra qualquer. Nisto
consiste um dos sofismas da prática reacionária da alfabetização.
O aprendizado da leitura e da escrita não pode ser feito como algo paralelo ou quase
paralelo à realidade concreta dos alfabetizandos. Aquele aprendizado, por isto
mesmo, demanda a compreensão da significação profunda da palavra, a que antes
fizemos referência.
Mais que escrever e ler que a “asa é da ave”, os alfabetizandos necessitam perceber a
necessidade de um outro aprendizado: o de “escrever” a sua vida, o de “ler” a sua
realidade, o que não será possível se não tornam a história nas mãos para, fazendoa,
por ela serem feitos e refeitos.
Daí que, nesta perspectiva crítica, se faça tão importante desenvolver, nos educandos
como no educador, um pensar certo sobre a realidade. E isto não se faz através de
blá-blá-blá mas do respeito à unidade entre prática e teoria.
A este propósito, ver Ernani Maria Fiori, Prefácio a Pedagogia do Oprimido, e Paulo Freire, nesse mesmo
livro. Ed. Paz e Terra, Rio, 1997, 4ª ed. (N. E.)
É necessário, realmente, libertar a teoria,do equívoco de que é comumente vítima,
não apenas na América Latina, segundo o qual é identificada com verbalismo, com
blá-blá-blá, com perda de tempo.
Isto é o que explica expressões tão repetidas entre nós, como: “Se a educação latinoamericana
não fosse teórica, mas prática, outros seriam seus resultados”, ou “é
necessário diminuir as classes teóricas”.
Explica também a divisão que se faz entre homens e mulheres teóricos e práticos,
toma ndo-se aqueles e aquelas à margem da ação, enquanto os segundos a realizam.
A separação, contudo, deveria ser feita entre teóricos e verbalistas. Neste caso, os
primeiros seriam necessariamente práticos também.
O que se deve opor à prática não é a teoria, de que é inseparável, mas o blá-blá-blá
ou o falso pensar.
Assim como não é possível identificar teoria com verbalismo, tampouco o é identificar
prática com ativismo. Ao verbalismo falta a ação; ao ativismo, a reflexão crítica sobre
a ação.
Não é estranho, portanto, que os verbalistas se isolem em suas torres de marfim e
considerem desprezíveis os que se dão à ação, enquanto os ativistas considerem os
que pensam sobre a ação e para ela, como “intelectuais nocivos”, “teóricos” e
“filósofos” que nada fazem senão obstaculizar sua atividade.
Para mim, que me situo entre os que não aceitam a separação impossível entre
prática e teoria, toda prática educativa implica numa teoria educativa.
Por isso é que, ao falar agora de antagônicas concepções da alfabetização de adultos,
não poderei deixar de, simultaneamente, fazer referência a aspectos de suas
respectivas práticas.
A fundamentação teórica da minha prática, por exemplo, se explica ao mesmo tempo
nela, não como algo acabado, mas como um movimento dinâmico em que ambas,
prática e teoria, se fazem e se re-fazem.
Desta forma, muita coisa que hoje ainda me parece válida, não só na prática
realizada e realizando-se, mas na interpretação teórica que fiz dela, poderá vir a ser
superada amanhã, não só por mim, mas por outros.
A condição fundamental para isto, quanto a mim, é que esteja, de um lado,
constantemente aberto às criticas que me façam; e outro, que seja capaz de manter
sempre viva a curiosidade, disposto sempre a retificar-me, em função dos próprios
achados de minhas futuras práticas e da prática dos demais.
Quanto aos outros, os que põem em prática a minha prática, que se esforcem por
recriá-la, repensando também meu pensamento. E ao fazê-lo, que tenham em mente
que nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico,
social, cultural, econômico, político, não necessariamente idêntico a outro contexto.
A compreensão crítica de minha prática no Brasil, até março de 1964, por exemplo,
exige a compreensão daquele contexto. Minha prática, enquanto social, não me
pertencia. Daí que não seja possível entender a prática que tive, em toda a sua
extensão, sem a inteligência do clima histórico em que se deu.
Este esforço, que se exige de mim e dos demais, salienta, mais uma vez, a unidade
da prática e da teoria.
Mas a compreensão da unidade da prática e da teoria, no domínio da educação,
demanda a compreensão, também, da unidade entre a teoria e a prática social que se
dá numa sociedade. Assim, a teoria que deve informar a prática geral das classes
dominantes, de que a educativa é uma dimensão, não pode ser a mesma que deve
dar supor-te às reivindicações das classes dominadas, na sua prática.
Daí a impossibilidade de neutralidade da prática educativa como da teoria que a ela
corresponde.
Uma coisa, pois, é a unidade entre prática e teoria numa educação orientada no
sentido da libertação, outra é a mesma unidade numa forma de educação para a
“domesticação”.
As classes dominantes não têm por que temer, por exemplo, a unidade da prática e
da teoria, na capacitação – para falar só nesta – da chamada mão-de-obra
qualificada, desde, porém, que nesta unidade, a teoria de que se fale seja a “teoria
neutra” de uma “técnica também neutra”.
A alfabetização de adultos não pode escapar a esta alternativa.
A primeira exigência prática que a concepção crítica da alfabetização se impõe é que
as palavras geradoras, com as quais os alfabetizandos começam sua alfabetização
como sujeitos do processo, sejam buscadas em seu “universo vocabular mínimo”, que
envolve sua temática significativa.
Somente a partir da investigação deste universo vocabular mínimo é que o educador
pode organizar o programa que, desta forma, vem dos alfabetizandos para a eles
voltar, não como dissertação mas como problematização.
Na prática criticada, pelo contrário, o educador, arbitrariamente – pelo menos do
ponto de vista sócio-cultural – elege, em sua biblioteca, as palavras geradoras com as
quais fabrica sua cartilha à qual, não raro, se reconhece validade ao nível de todo o
país.
Para a visão crítica, advertida com relação aos níveis da linguagem, entre eles o
pragmático, de importância fundamental para a eleição das palavras geradoras, estas
não podem ser selecionadas à luz de um critério puramente fonético. Uma palavra
pode ter uma força especial em uma área e não tê-la em outra, às vezes dentro de
uma mesma cidade.
Na linha destas reflexões, observemos algo mais. Enquanto que, na concepção e na
prática mecanicista da alfabetização o autor da cartilha elege as palavras, as
A respeito, quer dizer, do ponto de vista da alfabetização, ver Paulo Freire. Educação como Prática da
Liberdade, Ed. Paz e Terra, Rio, 1975, 6ª ed. – Do ponto de vista da post-alfabetização – Pedagogia do
Oprimido, Ed. Paz e Terra, Rio, 1975, 4ª ed.
decompõe na etapa da análise e compõe, na síntese, outras palavras com as sílabas
encontradas para, em seguida, com as palavras criadas, redigir textos turno os
citados, na prática que defendemos as palavras geradoras – palavras do povo – são
postas em situações problemas (codific ações), como desafios que exigem resposta
dos alfabetizandos. Problematizar a palavra que veio do povo significa problematizar a
temática a ela referida, o que envolve necessariamente a análise da realidade, que se
vai desvelando com a superação do conhecimento puramente sensível dos fatos pela
razão de ser dos mesmos. Assim, e pouco a pouco, os alfabetizandos vão percebendo
que o fato de, como seres humanos, falarem, não significa ainda que “dizem sua
palavra”.
É necessário, na verdade, reconhecer que o analfabetismo não é em si um freio
original. Resulta de um freio anterior e passa a tornar-se freio, Ninguém é analfabeto
por eleição, mas como conseqüência das condições objetivas em que se encontra. Em
certas circunstâncias, “o analfabeto é o homem que não necessita ler, em outras, é
aquele ou aquela a quem foi negado o direito de ler.
Em ambos os casos, não há eleição. O primeiro vive numa cultura cuja comunicação e
cuja memória são auditivas, se não em termos totais, em termos preponderantes.
Neste caso, a palavra escrita não tem significação. Para que se introduzisse a palavra
escrita e, com ela, a alfabetização, em uma realidade como esta, com êxito, seria
necessário que, concomitantemente, se operasse uma transformação capaz de mudar
qualitativamente a situação. Muitos casos de analfabetismo regressivo terão ai sua
explicação. São o resultado de campanhas de alfabetização messiânica ou
ingenuamente concebidas para áreas cuja memória é preponderante ou totalmente
oral.
Vias várias oportunidades em que tenho conversado com camponeses chilenos,
sobretudo em áreas em que se experimentaram conflitivamente em defesa da
reforma agrária, tenho escutado expressões como estas: “Antes da reforma agrária
não precisávamos das letras. Primeiro, porque não pensávamos. Nosso pensamento
era o do patrão. Segundo, porque não tínhamos o que fazer com as letras. Agora, a
coisa é diferente”.
No segundo caso, o analfabeto é aquele ou aquela que, “participando” de uma cultura
letrada, não tiveram a oportunidade de alfabetizar-se.
Nunca me esqueço da análise feita por um camponês do nordeste brasileiro, no
momento em que discutia duas codificações que apresentavam, a primeira, um índio
caçando, com seu arco e sua flecha; a segunda, um camponês como ele, caçando
também, com uma espingarda.
“Entre esses dois caçadores, disse, somente o segundo pode que seja analfabeto. O
primeiro, não”.
Por quê? lhe perguntei. Rindo um riso de quem se espantava com o meu porquê,
respondeu: “Não se pode dizer que o índio é analfabeto porque vive numa cultura que
não conhece as letras. Pra ser analfabeto é preciso viver no meio das letras e não
conhecer elas”.
A propósito de Codificação ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.
Álvaro Vieira Pinto, Consciência e Realidade Nacional, ISEB, Rio, 1960.
Na verdade, somente na medida em que aos alfabetizandos se problematiza o próprio
analfabetismo é que é possível entendê-lo em sua explicação mais profunda.
Não será com “Eva viu a uva”, a “Asa é da ave”, com perguntar-lhes se “Ada deu o
dedo ao urubu” que se logra tal objetivo.
Assim, reinsistamos, enquanto na prática reacionária os alfabetizandos não
desenvolvem nem podem desenvolver uma visão lúcida de sua realidade, na prática
aqui defendida eles a vão percebendo como uma totalidade. Vão superando, desta
forma, o que chamamos visão focalista da realidade, segundo a qual as parcialidades
de uma totalidade são vistas não integradas entre si, na composição do todo.
Na medida em que os alfabetizandos vão organizando uma forma cada vez mais justa
de pensar, através da problematização de seu mundo, da análise crítica de sua
prática, irão podendo atuar cada vez mais seguramente no mundo.
A alfabetização se faz, então, um quefazer global, que envolve os alfabetizandos em
suas relações com o mundo e com os outros. Mas, ao fazer-se este quefazer global,
fundado na prática social dos alfabetizandos, contribui para que estes se assumam
como seres do quefazer – da práxis. Vale dizer, como seres que, transformando o
mundo com seu trabalho, criam o seu mundo. Este mundo, criado pela transformação
do mundo que não criaram e que constitui seu domínio, é o mundo da cultura que se
alonga no mundo da história.
Desta forma, ao perceberem o significado criador e recriador de seu trabalho
transformador, descobrem um sentido novo em sua ação, por exemplo, de cortar uma
árvore, de dividi-la em pedaços, de tratá-los de acordo com um plano previamente
estabelecido e que, ao ser concretizado, dá lugar a algo que já não é a árvore.
Percebem, finalmente, que este algo, produto de seu esforço, é um objeto cultural.
De descoberta em descoberta, alcançam o fundamental:
a) que os freios a seu direito de “dizer sua palavra” estão em relação direta com a
não-apropriação por eles dos produtos de seu trabalho.
b) que o fato de trabalhar lhes proporciona um certo conhecimento, não importa
se são analfabetos.
c) que, finalmente, entre os seres humanos não há absolutização da ignorância
nem do saber. Ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo.
Nas experiências de que participei ontem no Brasil, como nas de que participo hoje no
Chile, sempre foram confirmadas estas afirmações.
“Agora sei que sou culto”, disse, certa vez, um velho camponês chileno ao discutir,
através de codificações, a significação do trabalho. E ao se lhe perguntar porque se
sabia culto, respondeu seguro: “Porque trabalho e trabalhando transformo o mundo”.
Esta afirmação, muito comum também no Brasil, revela a superação que vão fazendo
do conhecimento, ao nível preponderantemente sensível, de sua presença no mundo,
pela assunção crítica desta presença, o que implica no reconhecimento de não apenas
estarem no mundo, mas com o mundo.
Saber que é culto porque trabalha e trabalhando transforma o mundo, mesmo que
entre o momento do reconhecimento deste fato e a real transformação da sociedade
haja muito ainda o que fazer é algo, porém, que não se compara com a monótona
repetição dos ba-be-bi-bo-bu.
“Me agrada discutir sobre isto, disse uma mulher, também chilena, apontando para a
codificação de uma situação existencial de sua área, porque vivo assim. Mas,
continuou, enquanto vivo, não vejo. Agora sim, observo como vivo”.
Desafiada por sua própria situação existencial, representada na codificação, a mulher
foi capaz, numa espécie de “emersão” de sua forma de existir, de “admirá-la” e
percebê-la como até então não o fizera. Ter presentificada à sua consciência sua
maneira de existir, descrevê-la, analisá-la, significa, em última análise, desvelar a
realidade, mesmo que não signifique, ainda, um engajamento político para a sua
transformação.
Afirmação similar tivemos oportunidade de ouvir, no ano passado – 1967 – de um
homem em Nova York, durante a discussão de uma fotografia de trecho de uma rua
das redondezas de seu bairro.
Olhando silenciosamente a foto em seus pormenores – latas de lixo, pouca higiene,
aspectos típicos de uma área discriminada – disse, de repente: “Vivo aqui. Ando
diariamente nessas ruas. Não posso dizer que jamais tivesse visto isto. Agora, porém,
percebo que não percebia."
No fundo, aquele homem de Nova York percebia, naquela noite, a sua percepção
anterior, cuja deformação ele pôde retificar ao tomar distância de sua realidade,
através da representação da mesma.
É verdade, também, que nem sempre esta retificação da percepção anterior se dá
facilmente. É que a relação entre o sujeito e o objeto é tal que o desvelamento da
objetividade afeta igualmente a subjetividade e, às vezes, de forma intensamente
dramática e mesmo dolorosa.
Em certas circunstâncias, numa espécie de “manha da consciência”, “prefere-se” à
aceitação do real, como é, a sua ocultação, ficando-se com o ilusório, que se
transforma em real.
Na mesma experiência de Nova York, tive oportunidade de constatar igualmente este
fato. Discutia-se noutro grupo uma foto-montagem, bastante bem feita, de um trecho
da cidade que apresentava diferentes níveis sociais, caracterizados pelos próprios
edifícios.
O grupo que debatia estava, indubitavelmente, situado num dos últimos escalões.
Convidados os participantes a analisar a foto-montagem e a situar sua área entre os
diversos níveis, o fizeram, colocando, porém, sua área numa faixa intermediária.
Este trabalho é realizado por uma Instituição chamada Full Circle, dirigida por Roberto Fox, um sacerdote
cat6lico, atuando ao nível da post-alfabetização. Há algo de similar entre o que realizam seus educadores e o
que fizemos no Brasil e tentamos no Chile. Nunca houve, porém, nenhuma influência de nossa parte sobre
sua concepção da educação. Conhecemo-nos quando os visitei por sugestão de Ivan Illich.
Em Pedagogia do Oprimido o autor se refere a outra observação feita na mesma experiência de Nova
York. (N.E.)
Esta mesma resistência a aceitar o real – uma forma de defesa – tenho encontrado
também entre trabalhadores camponeses e trabalhadores urbanos na América Latina.
Não têm sido raros no Chile os que, ao lado dos muitos que vão decifrando sua
realidade em termos críticos, expressam, no debate em torno de sua nova experiência
no “asentamiento”, uma certa nostalgia do antigo patrão.
Condicionados pela ideologia dominante, não apenas obliteram sua capacidade de
percepção do real, mas também, às vezes, se “entregam”, docilmente, aos mitos
daquela ideologia.
A alfabetização de adultos, tal qual a entendemos, como a post-alfabetização, tem aí
um dos pontos cruciais a enfrentar.
“Descubro agora”, disse outro camponês chileno, ao se lhe problematizarem as
relações homem-mundo, “que não há homem sem mundo” E, ao perguntar-lhe o
educador, em nova problematização: admitindo-se que todos os seres humanos
morressem, mas ficassem as árvores, os pássaros, os animais, os mares, os rios, a
Cordilheira dos Andes, seria isto mundo? “Não!”, respondeu decidido: “Faltaria quem
dissesse: isto é mundo”.
Com esta resposta, o filósofo camponês, que a concepção elitista classificaria de
“ignorante absoluto”, colocou a questão dialética da subjetividade-objetividade.
“Quando éramos ‘inquilinos’”, disse outro camponês, depois de dois meses de
participação nas atividades de um "Círculo de Cultura”num “asentamiento”, “e o
patrão nos chamava de ingênuos, dizíamos: obrigado, patrão. Para nós, aquilo era um
elogio. Agora, que estamos ficando críticos, sabemos o que queria dizer com
ingênuos. Chamava-nos de bobos”. E que é ser crítico? lhe perguntamos. “É pensar
certo. É ver a realidade como ela é”, respondeu.
Há algo finalmente que gostaria de considerar. É que todas estas reações orais que se
vão dando durante as discussões nos Círculos de Cultura, devem ser transformadas
em textos que, entregues aos alfabetizandos, passam a ser por eles discutidos.
Isto não tem nada que ver, realmente, com a prática criticada, em que os
alfabetizandos repetem duas, três vezes, para memorizar, que a “asa é da ave”.
Assim, somente a alfabetização que, fundando-se na prática social dos alfabetizandos,
associa a aprendizagem da leitura e da escrita, como um ato criador, ao exercício da
compreensão critica daquela prática, sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca
da libertação, ofere ce uma contribuição a este processo.
Dai que não possa ser este um quefazer das classes dominantes.
Sobre "Círculo de Cultura”, ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade. (N. E.)
Os camponeses e seus textos de leitura1
Santiago-1968
Transformar o mundo através de seu trabalho, “dizer” o mundo, expressá-lo e
expressar-se são o próprio dos seres humanos.
A educação, qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão mais verdadeira
quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres
humanos, a de sua expressividade.
É exatamente isto o que não faz a educação que costumo chamar de “bancária”, em
que o educador substitui a expressividade pela doação de expressões que o educando
deve ir “capitalizando”. Quanto mais eficientemente o faça tanto melhor educando
será considerado.
Na alfabetização de adultos, como na post-alfabetização, o domínio da linguagem oral
e escrita constitui uma das dimensões do processo da expressividade. O aprendizado
da leitura e da escrita, por isso mesmo, não terá significado real se se faz através da
repetição pura-mente mecânica de sílabas. Este aprendizado só é válido quando,
simultaneamente com o domínio do mecanismo da formação vocabular, o educando
vai percebendo o profundo sentido da linguagem. Quando vai percebendo a
solidariedade que há entre a linguagem-pensamento e realidade, cuja transformação,
ao exigir novas formas de compreensão, coloca também a necessidade de novas
formas de expressão.
Tal é o caso da reforma agrária. Transformada a estrutura do latifúndio, de que
resultou a do “asentamiento”, não seria possível deixar de esperar novas formas de
expressão e de pensamento-linguagem.
Na estrutura do “asentamiento”, palavras e expressões que constituíam constelações
culturais e envolviam uma compreensão do mundo, típica da estrutura latifundista,
tendem a ir esvaziando-se de sua antiga força.
“Patrão. Sim, patrão. Que posso fazer se sou um camponês. Fale, que nós seguimos.
Se o patrão disse, é verdade. Sabe com quem está falando?” etc., são algumas destas
palavras e expressões incompatíveis com a estrutura do “asentamiento”, enquanto
esta é uma estrutura que se democratiza.
Agora bem, se ao lado destas transformações se desenvolve uma educação capaz de
ajudar a compreensão crítica da mudança operada – que atingiu igualmente a
maneira de trabalhar –, esta educação ajudará também a instauração de um novo
pensamento-linguagem.
1 Este texto, como outros que fazem parte deste volume, foi escrito para um seminário realizado por uma das
Equipes Centrais que coordenavam trabalhos de alfabetização de adultos em áreas rurais do Chile.
Analisando as mudanças de linguagem, em sociedades em processo de democratização, diz Barbu: "Novas
significações são dadas a velhas palavras e novas palavras são cunhadas para designar velhas coisas.” Barbu,
Zevedei, “Democracy and Dictatorship” – Their Psychology and Patterns of Life. Routledge and Kegan
Paul, Londres, 1956.
Basta sublinhar este aspecto das relações entre pensamento-linguagem e estrutura
social para que a alfabetização de adultos e a post-alfabetização tenham um
significado distinto.
Advertidos destas relações, os educadores darão o máximo de atenção à escolha das
palavras geradoras, bem como à redação dos textos de leitura. Estes devem levar em
conta homens e mulheres em seu contexto em transformação. Não podem ser meras
narrações da nova realidade, nem tampouco revestir-se de sentido paternalista.
Seu conteúdo, sua forma, sua extensão, sua complexidade crescente devem ser
seriamente considerados quando de sua elaboração.
Seu objetivo não é fazer a descrição de algo a ser memorizado. Pelo contrário, é
problematizar situações. É necessário que os textos sejam em si um desafio e como
tal sejam tomados pelos educandos e pelo educador para que, dialogicamente,
penetrem em sua compreensão. Daí que jamais devam converter-se em “cantigas de
ninar” que, em lugar de despertar a consciência critica, a adormecem. “As classes de
leitura”, em lugar de seguirem a rotina normal que as caracteriza, devem ser
verdadeiros seminários de leitura. Haverá sempre oportunidade, nestes seminários,
para se estabelecerem as relações entre um trecho do texto em discussão e aspectos
vários da realidade do “asentamiento”.
Uma palavra, uma afirmação contida no texto que se analisa, podem viabilizar a
discussão em torno da produção do “asentamiento”, de uma técnica mais adequada
às novas condições, a propósito de um problema de saúde, em torno da necessidade
de urna permanente formação com que se responda aos novos desafios.
Tudo isto implica não apenas numa rigorosa capacitação dos educadores de base,
mas também numa permanente avaliação de seu trabalho.
Avaliação e não inspeção. Nesta, seriam meros objetos da vigilância da Equipe
Central. Naquela, são tão sujeitos quanto a Equipe Central no ato de, tomando
distância do trabalho em realização, fazer a sua crítica.
Entendida assim, a avaliação não é o ato pelo qual A avalia B. É o ato por meio do
qual A e B avaliam juntos uma prática, seu desenvolvimento, os obstáculos
encontrados ou os erros e equívocos porventura cometidos. Daí o seu caráter
dialógico.
“Tomando distância” da ação realizada ou realizando-se, os avaliadores a examinam.
Desta forma, muita coisa que antes (durante o tempo da ação) não era percebida,
agora aparece de forma destacada diante dos avaliadores.
Neste sentido, em lugar de ser um instrumento de fiscalização, a avaliação é a
problematização da própria ação.
É preciso que os membros da Equipe Central se convençam, humildemente, de que
têm muito o que aprender com os educadores que se acham diretamente ligados às
bases populares, como estes com as bases.
Sem esta humildade, jamais admitirá a Equipe Central qualquer inadequacidade entre
sua visão da realidade e esta. Assim, se algo não anda bem, a causa deve estar na
incapacidade dos educadores de base, nunca na insuficiência teórica da Equipe
Central. Pensando possuir a verdade, decreta a sua infalibilidade. Daí que, em tal
hipótese, avaliar seja, para ela, inspecionar.
Assim, quanto mais burocrática seja uma Equipe Central, não só do ponto de vista
administrativo mas sobretudo mental, tanto mais estreita e inspetora será. Ao
contrário, tanto mais seja ela aberta e disponível à criatividade, antidogmática,
quanto mais avaliadora, no sentido aqui descrito, será.
Além destes textos elaborados pela Equipe Central, se faz absolutamente
indispensável o aproveitamento dos redigidos pelos camponeses. A pouco e pouco
estes devem ir multiplicando-se, o que não significa dever a Equipe Central parar o
seu esforço de redação ou de aproveitamento de um ou outro texto não redigido por
ela (por um especialista, por exemplo, no campo da economia rural, da saúde etc.),
quando necessário.
Neste sentido, os educadores devem aproveitar toda oportunidade para estimular os
camponeses a que exponham suas observações, suas dúvidas, suas críticas.
Durante a discussão de uma situação problemática – codificação – os educadores
devem solicitar aos camponeses que redijam, primeiramente no quadro-negro,
depois, numa folha de papel, suas observações – uma simples frase, não importa.
Estes dois momentos da redação têm objetivos distintos. O primeiro tem por
finalidade propor ao grupo a discussão do conteúdo do texto redigido por um de seus
companheiros. Na medida em que a experiência se vá afirmando, é importante que
caiba ao autor do texto a coordenação da discussão em torno de sua compreensão.
O segundo, no qual o educando redige seu pequeno texto numa folha de papel, tem
como fim seu aproveitamento posterior numa espécie de antologia de textos
camponeses a ser organizada pela Equipe Central, com a participação de educadores
de base e, também, de alguns camponeses. Antologia não somente de textos dos
participantes do Centro de Educação de um “asentamiento”, mas dos participantes
dos Centros de todos os “asentamientos” de uma zona.
Selecionados os textos e classificados em função de sua temática, a Equipe Central
redigirá comentários em forma simples, de caráter problematizador, a propósito de
cada um.
Uma outra maneira de recolher o discurso camponês, convertendo-o em textos de
leitura, seria a de gravar as discussões nos Centros de Educação ou Círculos de
Cultura.
Pensemos, por exemplo, numa área em que haja três ou quatro “asentamientos” e
em cada um dos quais existam “n” Círculos de Cultura funcionando ainda na etapa de
alfabetização.
Como sabemos, a codificação que os camponeses têm diante de si não é uma simples
ajuda visual de que o educador se serve para “dar” uma aula melhor. A codificação,
pelo contrário, é um objeto de conhecimento que, mediatizando educador e
educandos, se dá a seu desvelamento.
Representando um aspecto da realidade concreta dos camponeses, a codificação tem
escrita em si a palavra geradora a ela referida ou a algum de seus elementos.
Ao descodificarem a codificação, com a participação do educador, os camponeses
analisam sua realidade e expressam, em seu discurso, os níveis de percepção de si
mesmos em suas relações com a objetividade. Revelam os condicionamentos
ideológicos a que estiveram submetidos em sua experiência na “cultura do silêncio”,
nas estruturas do latifúndio.
A prática nos tem demonstrado, a todos os que temos participado de trabalhos como
este, a importância e a riqueza do discurso dos alfabetizandos, ao analisar sua
realidade representada na codificação. Importância e riqueza, qualquer que seja o
ângulo em que as encaremos – seja o da forma, seja o do conteúdo, que envolve a
análise lingüística, a qual, por sua vez, se alonga na ideológica e política.
A existência deste material abre à Equipe Central uma série de possibilidades que não
podem ser desprezadas. As sugestões que farei em torno de tais possibilidades
desafiarão, certamente, a Equipe Central a perceber outras que me tenham passado
despercebidas.
Um primeiro emprego deste material, antes mesmo de transcritos os debates em
torno das codificações, poderia ser o da realização de seminários de avaliação em que
os educadores de uma área, escutando as gravações, discutiriam entre si, com
representantes da Equipe Central, seu procedimento durante o processo da
descodificação. Neste momento, no contexto do seminário de avaliação, os
educadores estariam tomando distância de sua prática anterior, percebendo, assim,
seus acertos e seus equívocos. Na mesma linha destes seminários de avaliação seria
fundamental que educadores, trabalhando na área “A”, escutassem as gravações dos
debates realizados nos Círculos de Cultura da área “B” e vice-versa.
Esforço idêntico poderia ser feito ao nível dos alfabetizandos. Desta forma,
camponeses da área “A” escutariam e debateriam as gravações das descodificações
realizadas por companheiros da área “B”, em torno das mesmas codificações que eles
também haviam descodificado e vice-versa.
Um empenho como este ajudaria a alfabetizandos e alfabetizadores a ir superando o
que costumo chamar de visão focalista da realidade e ir ganhando a compreensão da
totalidade.
Parece-me igualmente indispensável que a Equipe Central motive os especialistas –
agrônomos, técnicos agrícolas, educadoras domésticas, sanitaristas, cooperativistas,
veterinários – envolvidos nas diferentes atividades do “asentamiento”, para que, em
seminários também, analisem o discurso dos camponeses em que, repitamos,
expressam a forma como se vêem em suas relações com o mundo.
É preciso que esses técnicos superem a visão deformada da especialidade, a que
transforma a especialização em especialismo, escravizando-os a uma percepção
estreita dos problemas.
Agrônomos, técnicos agrícolas, sanitaristas, cooperativistas, alfabetizadores, todos
nós temos muito o que aprender com os camponeses e se a isto nos recusamos, nada
a eles podemos ensinar.
Procurar compreender o discurso camponês será um passo decisivo na superação
daquela percepção estreita dos problemas a que me referi acima.
Outra possibilidade de aproveitamento da gravação das descodificações poderia ser a
de, discutindo-as com os próprios camponeses, motivá-los a que fizessem montagens
de dramatizações em torno de fatos por eles vividos e por eles narrados em seus
debates.
A palavra luta, por exemplo, têm suscitado em vários Círculos de Cultura de
diferentes “asentamientos”, discussões bem vivas em que os camponeses falam do
que significou para eles a conquista de um “fundo”, a luta para obter o direito à terra.
São discussões em que contam um pouco de sua história, que não se encontra nos
compêndios convencionais.
Dramatizar estes fatos é não apenas uma forma de estimular a expressividade dos
camponeses mas também de desenvolver a sua consciência política.
Por outro lado, no momento em que estas gravações começassem a cobrir todas as
áreas de reforma agrária do pais, podemos imaginar o alcance político-pedagógico
que o intercâmbio do discurso camponês poderia ter. Este intercâmbio poderia ser
estimulado também através do programa radiofônico sob a responsabilidade do
“Instituto de Desarrollo Agropecuario” que poderia começar a transmitir alguns dos
debates gravados, seguidos por comentários, em linguagem simples, feitos pela
Equipe Central.
Há algo mais que a análise deste discurso pode proporcionar: o reconhecimento de
uma série de preocupações das comunidades camponesas que, em última análise,
revelam uma temática a ser tratada interdisciplinarmente e na qual se poderia basear
a organização do conteúdo programático para a post -alfabetização.
Por que, ao pensar-se no que deve vir depois da alfabetização, se pensa sempre no
programa da escola primária, na sua seriação tradicional? É como se a alfabetização
dos adultos, mais rápida ou menos rápida, fosse um “tratamento” necessário que se
lhes aplicasse para que depois atravessassem a monotonia da escola primária
convencional.
Uma alfabetização de adultos que rompe com os esquemas tradicionais não pode, por
isso mesmo, prolongar-se numa post-alfabetização que a negue.
Tão ligada ao esforço de produção quanto a alfabetização, a post-alfabetização nos
“asentamientos” há de ser, como aquela, um ato de conhecimento e não de
transferência deste. Seu conteúdo programático, partindo da realidade concreta dos
camponeses, deve oferecer-lhes a possibilidade de ir superando o conhecimento ao
nível preponderantemente “sensível” das coisas e dos fatos pela “razão de ser” dos
mesmos.
Daí que, apoiada na prática dos camponeses, a post-alfabetização nos
“asentamientos” deva oferecer-lhes, em níveis que se vão ampliando, um
conhecimento cada vez mais cientifico de seu quefazer e de sua realidade.
A análise das descodificações gravadas proporciona a apreensão de temas básicos,
capazes de ser desdobrados em unidades de aprendizagem nos mais variados
campos. No da agricultura, no da saúde, no da matemática, no da ecologia, no da
geografia, no da história, no da economia etc. O importante é que todos estes
estudos se façam sempre em função da realidade concreta dos camponeses e de sua
prática nela.
Finalmente, transcritas as gravações das descodificações, a Equipe Central,
assessorada por educadores de base e líderes camponeses, organizaria livros de
textos – as antologias camponesas. Livros que poderiam ser acrescidos de um ou
outro texto redigido pela equipe, como sugerimos na primeira parte deste trabalho.
Da mesma forma como as gravações, os livros seriam intercambiados de área à área.
Ao estudar seu próprio texto ou o texto de companheiros de outra área, os
camponeses estariam estudando o discurso que brotou da descodificação de uma
temática.
Ao discutir e não apenas ao ler o discurso anterior, fariam a crítica deste discurso,
com um novo, a ser gravado também. O discurso sobre o discurso anterior, que
implica no conhecimento do conhecimento anterior, daria lugar a um novo livro, um
segundo livro de leitura, cada vez mais rico, mais crítico, mais plural em sua
temática.
Desta maneira, se estaria tentando um esforço sério no sentido do desenvolvimento
da expressividade dos camponeses que se iriam inserindo criticamente na realidade
do “asentamiento”. Inserção crítica por meio da qual iriam ganhando mais
rapidamente a clara compreensão de que à nova estrutura do “asentamiento”
corresponde um novo pensamento-linguagem.
Ação cultural
e reforma agrária
Santiago, 1968.
Incidindo sobre a estrutura do latifúndio, transformando-a noutra, transitória, a do
“asentamiento”, a reforma agrária exige um permanente pensar crítico em torno da
ação transformadora mesma e dos resultados que dela se obtenham.
Qualquer postura ingênua em face deste processo, da qual resultem quefazeres
igualmente ingênuos, pode conduzir a erros e a equívocos funestos.
Um desses equívocos, por,exemplo, pode ser o de reduzir a ação transformadora a
um ato mecânico, através do qual a estrutura do latifúndio cederia seu lugar à do
“asentamiento”, como quando alguém, mecanicamente, substitui uma cadeira por
outra, ou a desloca de um lugar a outro.
O equívoco fundamental a que esta visão, na melhor das hipóteses acrítica, pode
levar, está em que se pretenda operar no domínio histórico-cultural, especificamente
humano, em que se dá a reforma agrária, como quem se comporta no domínio das
coisas.
Mecanicismo, tecnicismo, economicismo são dimensões de uma mesma percepção
acrítica do processo da reforma agrária. Implicam todas elas na minimização dos
camponeses, como puros objetos da transformação. Dai que, numa tal perspectiva,
de caráter reformista, o importante seja fazer as mudanças para e sobre os
camponeses, como objetos, e não com eles, como sujeitos, também, da
transformação.
Se é indispensável que os camponeses adotem novos procedimentos técnicos para o
aumento da produção, então não há outra coisa a fazer senão “estender” a eles as
técnicas dos especialistas, com as quais se pretende substituir seus procedimentos
empíricos.
Desta forma, se esquece de que as técnicas, o saber científico, assim como o
procedimento empírico dos camponeses se encontram condicionados históricoculturalmente.
Neste sentido são manifestações culturais tanto as técnicas dos
especialistas quanto o comportamento empírico dos camponeses.
Subestimar a capacidade criadora e recriadora dos camponeses, desprezar seus
conhecimentos, não importa o nível em que se achem tentar “enchê-los” com o que
aos técnicos, lhes parece certo, são expressões, em última análise, da ideologia
dominante.
Não queremos, contudo, com isto dizer que os camponeses devam permanecer no
estado em que se encontram com relação a seu enfrentamento com o mundo natural
e à sua posição em face da vida política do pais. Queremos afirmar que eles não
devem ser considerados como “vasilhas” vazias nas quais se vá depositando o
conhecimento dos especialistas, mas, pelo contrário, sujeitos, também, do processo
de sua capacitação. Capacitação indispensável ao aumento da produção, cuja
necessidade, demasiado óbvia, não necessita ser discutida. O que, porém, não apenas
se pode mas se deve discutir, é a forma de compreender e de buscar o aumento da
produção.
A visão ingênua que, em sua percepção focalista da realidade, economicista,
desconhece que não há produção fora das relações homem-mundo, termina por
transformar os camponeses em meros instrumentos de produção.
Assim, na medida em que despreza o fato de que não há produção fora das relações
homem-mundo, não pode perceber sua importância.
Daí que não possa compreender e, quando compreende, não dê a devida importância
ao fato de que, transformando a realidade natural com seu trabalho, os homens criam
o seu mundo. Mundo da cultura e da história que, criado por eles, sobre eles se volta,
condicionando-os. Isto é o que explica a cultura como produto, capaz ao
mesmo'tempo de condicionar seu criador.
O que nos parece dever ficar claro é que o indispensável aumento da produção
agrícola não pode ser visto como algo separado do universo cultural em que se dá.
Os obstáculos ao aumento da produção, com os quais se defrontam os técnicos no
processo da reforma agrária, são, em grande medida, obstáculos de caráter cultural.
A resistência dos camponeses a esta ou àquela forma mais eficaz de trabalho, que
implicaria numa maior produtividade, é de natureza cultural.
Os camponeses desenvolvem sua maneira de pensar e de visualizar o mundo de
acordo com pautas culturais que, obviamente, se encontram marcadas pela ideologia
dos grupos dominantes da sociedade global de que fazem parte. Sua maneira de
pensar, condicionada por seu atuar ao mesmo tempo em que a este condiciona, de há
muito e não de hoje, se vem constituindo, cristalizando. E se muitas destas formas de
pensar e de atuar persistem hoje, mesmo em áreas em que os camponeses se
experimentam em conflitos na defesa de seus direitos, com mais razão permanecem
naquelas em que não tiveram uma tal experiência. Naquelas em que a reforma
agrária simplesmente aconteceu.
Esta é a razão que explica a manutenção de grande parte das manifestações culturais
do latifúndio na estrutura transitória do “asentamiento”. Só um mecanicista terá
dificuldades em entender que a supra-estrutura não se transforma automaticamente
com a mudança infra-estrutural.
A transformação de uma sociedade será, por isto mesmo, tão mais radical quanto
seja um processo intra-estrutural que toma, assim, a estrutura como a dialetização
entre a infra e a supra-estrutura. Muito da negatividade do que costumamos chamar
“cultura do silêncio”, típica das estruturas fechadas como a do latifúndio, penetra,
com seus sinais visíveis, na nova estrutura do “asentamiento”.
Esta “cultura do silêncio”, gerada nas condições objetivas de uma realidade
opressora, não somente condiciona a forma de estar sendo dos camponeses enquanto
se acha vigente a infra-estrutura que a cria, mas continua condicionando-os, por largo
tempo, ainda quando sua infra-estrutura tenha sido modificada.
A este propósito, ver Paulo Freire, Extensão ou Comunicação?, Ed. Paz e Terra, Rio, 1977, 3ª ed. (N. E.)
Se a relação que havia antes entre a estrutura dominadora e as formas de perceber a
realidade e de atuar nela está desaparecendo, isto não significa que as negatividades
da “cultura do silêncio” hajam perdido sua força condicionante com a instalação do
“asentamiento”. Seu poder inibidor permanece, não como reminiscência
inconseqüente, mas como algo concreto, interferindo no quefazer novo que a nova
estrutura demanda dos camponeses. Para que se esgote este poder inibidor é
necessário que as novas relações humanas, características da estrutura recéminstaurada
e baseadas numa realidade material diferente, sejam capazes de criar um
estilo de vida radicalmente oposto ao anterior. E, ainda assim, a “cultura do silêncio”
pode, de vez em quando, em função de certas condições favoráveis, “reativar-se”,
reaparecendo em suas manifestações típicas.
Só através da “dialética da sobredeterminação”é possível compreender esta
permanência que, na verdade, cria problemas e dificuldades até mesmo às
transformações revolucionárias.
Somente armados deste instrumento metodológico poderemos entender e explicar as
reações de caráter fatalista dos camponeses em face dos desafios que a nova
realidade lhes faz. Como também compreender que eles tenham, não raras vezes, no
modelo dominador do patrão latifundista, o exemplo que devem seguir. Ou que, já
enquanto “assentados”, lhes pareça normal dizer, referindo-se ao antigo patrão, “o
verdadeiro patrão mora mais acima”, não percebendo que, ao considerar o antigo
patrão como o verdadeiro, estão questionando a validade mesma de seu estado de
“assentados”, na realidade nova do “asentamiento”, em que devem superar a posição
anterior de objetos, assumindo a de sujeitos. Ou ainda, que muitos vejam na
Corporación de la Reforma Agrária seu novo patrão.
Estas reações não podem ser entendidas pelos mecanicistas que, ingenuamente
convencidos da transformação automática da supra-estrutura com a mudança da
infra, tendem a explicá-las anticientificamente, considerando os camponeses como
“preguiçosos e incapazes” e, às vezes também, “ingratos”.
Daí que se inclinem a formas de ação vertical, paternalista, em lugar de estimular a
tomada de decisão dos camponeses. Desta maneira, reativando a “cultura do silêncio”
e mantendo os camponeses no estado de dependência, não contribuem em nada para
a superação de sua percepção fatalista em face das situações limites; superação
desta percepção fatalista por outra, crítica, capaz de divisar mais além destas
situações, o que chamamos de “inédito viável”.
Daí que, frente a estas, fatalistamente, esta modalidade de consciência busque suas
razões fora das situações mesmas, encontrando-as quase sempre, no destino ou no
castigo divino. A este nível, não é possível, realmente, uma percepção estrutural
dos problemas de que resultaria sua inserção critica no processo de transformação.
Isto só é possível quando, através de uma permanente mobilização dos camponeses,
de sua participação ativa numa prática política, na defesa de seus interesses e na
compreensão de que estes não devem ser antagônicos aos de seus companheiros,
Louis Althusser, Pour Marx, François Maspéro, Paris, 1967.
Afirmação feita por um líder camponês, em conversa com o autor, num “asentamiento”.
Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.
“A seca atual é vingança de São Pedro, por seu dia já não ser feriado santo”, disse-nos um líder camponês
num dos “asentamientos”
trabalhadores urbanos, conseguem superar o estado que Goldman chama de
“consciência real” pelo “máximo de consciência possível”.
Imobilizar os camponeses exercendo ainda sobre eles uma prática assistencialista,
não pode constituir-se no caminho para tal superação. Por este caminho, os
camponeses poderão ser, no máximo, incorporados como objetos ao processo da
reforma agrária, jamais a ele incorporados como sujeitos dele. Podem ser
incorporados à produção, como instrumentos dela, jamais incorporar-se a ela como
sujeitos.
Impõe-se, pelo contrário, uma modalidade de ação através da qual, culturalmente, se
enfrente a “cultura do silêncio” e se opere a extrojeção de seus mitos.
Nesta modalidade de ação, a realidade que mediatiza seus sujeitos se “entrega” à
“admiração” destes, constituindo-se como objeto de conhecimento de ambos:
educadores-educandos, educandos-educadores.
Tudo isto demanda que o “asentamiento”, enquanto uma unidade de produção, seja
entendido também como unidade cultural. Desta forma, a capacitação técnica dos
camponeses jamais se reduziria à transferência de receitas tecnicistas e se faria uma
atividade realmente criadora.
Ao capacitar-se em novas técnicas, deveriam discutir a maneira como estiveram
sendo, “silenciosamente”, na estrutura opressiva do latinfúndio.
Enquanto a forma de ação assistencialista, vertical, manipuladora, envolve,
necessariamente, a “invasão cultural”, a que defendemos propõe a “síntese cultural”.
Para que esta se dê é necessário que, desde o momento em que esta ação começa, já
seja dialógica.
Agrônomos, técnicos agrícolas, alfabetizadores, cooperativistas, sanitaristas devem
encontrar-se com os camponeses, dialogicamente, tendo a realidade mesma do
“asentamiento” como mediadora.
Desta forma, o caráter de agentes da ação, que têm os que tornam a iniciativa desta,
deixa de pertencer-lhes, na síntese, em cujo momento os camponeses assumem o
papel também de agentes da ação.
A ação cultural que se orienta no sentido da síntese tem seu ponto de partida na
investigação temática ou dos temas geradores, por meio da qual os camponeses
iniciam uma reflexão crítica sobre si mesmos, percebendo-se como estão sendo.
Ao apresentar-se aos camponeses, durante a investigação temática, sua realidade
objetiva, na qual e com a qual estão, como um problema, através de situações
codificadas, refazem sua percepção anterior da realidade.
Alcançam, assim, o conhecimento do conhecimento anterior, que os leva ao
reconhecimento de erros e equívocos no antigo conhecimento. Desta forma ampliam
Lucien Goldman, Las Ciencias Humanas y la Filosofia, Edición Nueva Vision, Buenos Aires.
A propósito de “invasão cultural” e “síntese cultural”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. (N. E)
Ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. (N. E.)
o marco do conhecer, percebendo, em sua “visão de fundo”, dimensões até então não
percebidas e que, agora, se lhes apresentam como “percebidos destacados em si”.
Este tipo de ação cultural, reinsistamos, só tem sentido quando tenta constituir-se
como um momento de teorização da prática social de que participam os camponeses.
Se se aliena desta prática, se perde, esvaziada, num puro blá-blá-blá .
Finalmente, a ação cultural como a entendemos não pode, de um lado, sobrepor-se à
visão do mundo dos camponeses e invadí-los culturalmente; de outro, adaptar-se a
ela. Pelo contrário, a tarefa que ela coloca ao educador é a de, partindo daquela
visão, tomada como um problema, exercer, com os camponeses, uma volta crítica
sobre ela, de que resulte sua inserção, cada vez mais lúcida, na realidade em transformação.
O papel do trabalhador
social no processo
de mudança
Santiago – 1968
Este encontro do qual participamos é uma oportunidade que as instituições
governamentais aqui representadas oferecem a alguns de seus grupos de técnicos
para pensar em comum. Pensar em comum em torno de problemas objetivos que
envolvem sua atuação em seus vários campos de trabalho.
Nossa contribuição se centra na discussão do tema que nos foi proposto: o papel do
trabalhador social no processo de mudança.
Para fazê-lo, devemos começar por exercer uma reflexão sobre a frase mesma que
envolve o nosso tema
A vantagem de assim proceder está em que a frase proposta se desvela ante nós em
sua compreensão total. O adentramento que façamos neta, desde um ponto de vista
crítico, nos possibilitará perceber a interação de seus termos na constituição de um
pensamento estruturado, que contém um tema significativo.
Este adentramento crítico na frase proposta, que nos leva à apreensão mais profunda
de seu significado, supera a percepção ingênua, que sendo simplista, nos deixa
sempre na periferia de tudo o que tratamos.
Para o ponto de vista crítico que aqui defendemos, a operação de mirar implica noutra
– a de ad-mirar. Ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-mirado o miramos de dentro e
desde dentro, o que nos faz ver.
Na ingenuidade, que é uma forma “desarmada” de enfrentamento com a realidade,
miramos apenas e, porque não ad-miramos, não podemos mirar o mirado em sua
intimidade, o que não nos leva a ver o que foi puramente mirado.
Por isto, é necessário que ad-miremos a frase proposta para, mirando-a de dentro,
reconhecer que não deve ser tomada como um mero clichê. A frase em discussão não
é um rótulo. Ela é, em si, um problema, um desafio.
Enquanto apenas miremos a frase, ficando assim na sua periferia, provavelmente não
faremos outra coisa, ao falar do tema que ela envolve, senão um discurso de “frases
feitas”.
A operação referida de adentramento crítico na frase proposta nos possibilita outra
operação – a de sua cisão em suas partes constitutivas. Esta cisão da totalidade em
suas partes nos permite retornar a ela (totalidade) alcançando desta forma uma
compreensão mais vertical de sua significação.
Ad-mirar, mirar desde dentro, cindir para voltar a mirar o todo ad-mirado, que são
um ir até o todo e um voltar dele até suas partes, são operações que só se dividem
pela necessidade que tem o espírito de abstrair para alcançar o concreto. No fundo,
são operações que se implicam mutuamente.
Ao ad-mirar a frase que envolve um tema desafiador, ao cindi-la em seus elementos,
constatamos que o termo papel se acha modificado por uma expressão restritiva, que
delimita sua “extensão”: do trabalhador social. Nesta, por outro lado, há um
qualificativo: social, que incide sobre a “compreensão” do termo trabalhador.
Esta subunidade da estrutura geral – papel do trabalhador social – se liga à segunda
– processo de mudança – que representa, segundo a compreensão da frase, “onde” o
papel se cumpre, através do conectivo em.
Na verdade porém, o papel do trabalhador social não se dá no processo da mudança,
como a inteligência puramente gramatical da frase nos sugere.
O papel do trabalhador social se desenvolve num domínio mais amplo, no qual a
mudança é um dos aspectos. O trabalhador social atua, com outros, na estrutura
social.
Daí que se nos imponha compreendê-la em sua complexidade. Se não a entendemos
como algo que, para ser, tem de estar sendo, não teremos dela uma visão critica. O
que, de fato, caracteriza a estrutura social não é a mudança nem a permanência
tomadas em si mesmas, mas a “duração” da contradição entre ambas, em que uma
delas pode ser preponderante sobre a outra.
Na estrutura social, enquanto dialetização entre a infra e a supraestrutura, não há
permanência da permanência nem mudança da mudança, mas o empenho de sua
preservação em contradição com o esforço por sua transformação. Daí que não possa
ser o trabalhador social, como educador que é, um técnico friamente neutro. Silenciar
sua opção, escondê-la no emaranhado de suas técnicas ou disfarçá-la com a
proclamação de sua neutralidade não significa na verdade ser neutro mas, ao
contrário, trabalhar pela preservação do “status quo”.
Daí a necessidade que tem de clarificar sua opção, que é política, através de sua
prática, também política. Sua opção determina seu papel, como seus métodos de
ação.
É uma ingenuidade pensar num papel abstrato, num conjunto de métodos e de
técnicas neutros para uma ação que se dá em uma realidade que também não é
neutra.
Assim, se a opção do trabalhador social é reacionária, sua ação e os métodos
adotados se orientarão no sentido de frear as transformações. Em lugar de
desenvolver um trabalho através do qual a realidade se vá desvelando a ele e aos
com quem trabalha, em um esforço crítico comum, se preocupará, pelo contrário, em
mitificar a realidade. Em lugar de ter nesta uma situação problemática que o desafia e
aos homens com quem deveria estar em comunicação, sua tendência é inclinar-se a
soluções de caráter assistencialista. O que o move, em última análise, através de
ações e reações, é ajudar a “normalização” da “ordem estabelecida” que serve aos
interesses da elite do poder.
O trabalhador social que faz esta opção pode, e quase sempre tenta, disfarçá-la,
aparentando sua adesão à mudança, ficando, porém, nas meias mudanças, que são
uma forma de não mudar,
Um dos sinais da opção reacionária do trabalhador social são suas inquietações em
face das conseqüências da mudança, seu receio ao novo, seu medo, às vezes
impossível de ser escondido, de perder seu “status social”. Daí que, em seus métodos
de ação, não haja lugar para a comunicação, para a reflexão critica, para a
criatividade, para a colaboração, mas para a manipulação ostensiva ou não.
O trabalhador social reacionário não pode realmente interessar-se por que os
indivíduos desenvolvam uma percepção critica de sua realidade. Não pode interessarse
por que exercitem uma reflexão, enquanto atuam, sobre a própria percepção que
estão tendo da realidade. Não lhe interessa esta volta da percepção sobre a
percepção, condicionada pela realidade em que se acham.
É que, no momento em que os indivíduos, atuando e refletindo, são capazes de
perceber o condicionamento de sua percepção pela estrutura em que se encontram,
sua percepção começa a mudar, embora isto não signifique ainda a mudança da
estrutura. É algo importante perceber que a rea1idade social é transformável; que
feita pelos homens, pelos homens pode ser mudada; que não é algo intocável, um
fado, uma sina, diante de que só houvesse um caminho: a acomodação a ela. É algo
importante que a percepção ingênua da realidade vá cedendo seu lugar a uma
percepção que é capaz de perceber-se; que o fatalismo vá sendo substituído por uma
crítica esperança que pode mover os indivíduos a uma cada vez mais concreta ação
em favor da mudança radical da sociedade. Ao trabalhador social reacionário nada
disto interessa.
Poderá dizer-se que a mudança da percepção não é possível antes da mudança da
estrutura, na razão mesma do seu condicionamento por esta. Tal afirmação, se
tomada de um ponto de vista extremado, pode., nos conduzir a interpretações
mecanicistas das relações percepção-realidade.
Por outro lado, para evitar qualquer confusão entre nossa posição e uma postura
idealista, é necessário que digamos algo mais sobre este processo.
A mudança da percepção da realidade pode dar-se “antes” da transformação desta, se
não se empresta ao termo antes a significação de dimensão estagnada do tempo,
com que lhe pode conotar a consciênc ia ingênua.
A significação do antes, aqui, não é do sentido comum. O antes aqui não significa um
momento anterior que estivesse separado do outro por uma fronteira rígida. O antes,
pelo contrário, faz parte do processo de transformação estrutural.
Desta forma, a percepção da realidade, distorcida pela ideologia dominante, pode ser
mudada, na medida em que, no “hoje” em que se está verificando o antagonismo
entre mudança e permanência, este antagonismo começa a se fazer um desafio.
Esta mudança de percepção, que se dá na problematização de uma realidade
conflitiva, implica num novo enfrentamento dos indivíduos com sua realidade. Implica
numa “apropriação” do contexto, numa inserção nele, num já não ficar “aderido” a
ele; num já não estar quase sob o tempo, ma s nele.
Se este esforço não pode ser desenvolvido pelo trabalhador social reacionário, deve
ser uma preocupação constante do que se compromete com a mudança. Daí que seu
papel seja diferente e que seus métodos de ação não possam confundir-se com
aqueles recém-referidos, característicos da posição reacionária.
Se o primeiro, proclamando a inexistente neutralidade de seu quefazer, entretém os
indivíduos, os grupos e as comunidades com formas de ação puramente anestésicas,
o que opta pela mudança se empenha em desvelar a realidade. Trabalha com, jamais
sobre, os indivíduos, a quem considera sujeitos e não objetos, incidências de sua
ação. Por isso mesmo é que, humilde e crítico, não pode aceitar a ingenuidade
contida na “frase feita” e tão generalizada em que ele aparece como o “agente da
mudança”. Esta não é tarefa de alguns, mas de todos os que com ela realmente se
comprometem.
O trabalhador social que opta pela mudança não teme a liberdade, não prescreve, não
manipula. Mas, rejeitando a prescrição e a manipulação, rejeita igualmente o
espontaneísmo.
É que ele sabe que todo empenho de transformação radical de uma sociedade implica
na organização consciente das massas populares oprimidas e que esta organização
demanda a existência de uma vanguarda lúcida. Se esta, de um lado, não pode ser a
“proprietária” daquelas, não pode, de outro, deixá-las entregues a si mesmas.
Seria, porém, uma ilusão pensar que o trabalhador social, numa linha como esta,
pudesse agir livremente, como se os grupos dominantes não estivessem
necessariamente despertos para a defesa de seus interesses. Em função destes é que
são admitidas certas mudanças, de caráter obviamente reformistas e, mesmo assim,
com a devida cautela.
Dai a necessidade que tem o trabalhador social de conhecer a realidade em que atua,
o sistema de forças que enfrenta, para conhecer também o seu “viável histórico”. Em
outras palavras, para conhecer o que pode ser feito, em um momento dado, pois que
se faz o que se pode e não o que se gostaria de fazer.
Isto significa ter uma compreensão clara das relações entre tática e estratégia, nem
sempre, infelizmente, seriamente consideradas.
Ação cultural para a libertação1
I PARTE: O processo de alfabetização de adultos como ação cultural para a
libertação
a) Toda prática educativa implica numa concepção dos seres humanos e do mundo
A experiência nos ensina que nem todo óbvio é tão óbvio quanto parece. Assim, é
com uma obviedade que começamos este trabalho: toda prática educativa envolve
uma postura teórica por parte do educador. Esta postura, em si mesma, implica – as
vezes mais, as vezes menos explicitamente – numa concepção dos seres humanos e
do mundo. E não poderia deixar de ser assim. É que a processo de orientação dos
seres humanos no mundo envolve não apenas a associação de imagens sensoriais,
como entre os animais, mas. sobretudo, pensamento-linguagem; envolve desejo,
trabalho-ação transformadora sobre o mundo, de que resulta o conhecimento do
mundo transformado. Este processo de orientação dos seres humanos no mundo não
pode ser compreendido, de um lado, de um ponto de vista puramente subjetivista; de
outro, de um ângulo objetivista mecanicista. Na verdade, esta orientação no mundo
só pode ser realmente compreendida na unidade dialética entre subjetividade e
objetividade. Assim entendida, a orientação no mundo põe a questão das finalidades
da ação ao nível da percepção crítica da realidade.
Imersos no tempo, em seu mover-se no mundo, os animais não se assumem como
presenças nele; não optam, no sentido rigoroso da expressão, nem valoram. Seres
históricos, inseridos no tempo e não imersos nele, os seres humanos se movem no
mundo, capazes de optar, de decidir, de valorar. Têm o sentido do projeto, em
contraste com os outros animais, mesmo quando estes vão mais além de uma rotina
puramente instintiva.
Daí que a ação humana, ingênua ou crítica, envolva finalidades, sem o que não seria
práxis, ainda que fosse orientação no mundo. E não sendo práxis seria ação que
ignoraria seu próprio processo e seus objetivos.
A relação entre a consciência do projeto proposto e o processo no qual se busca sua
concretização é a base da ação planificada dos seres humanos, que implica em
métodos, objetivos e opções de valor.
A alfabetização de adultos deve ser vista, analisada e compreendida desta forma. O
analista crítico descobrirá nos métodos e nos textos usados pelos educadores opções
valorativas que revelam uma filosofia do ser humano, bem ou mal esboçada, coerente
ou incoerente, assim como uma opção política, explícita ou disfarçada. Somente uma
mentalidade mecanicista, que Marx chamaria de “grosseiramente materialista”,
poderia reduzir a alfabetização de adultos a uma ação puramente técnica. Esta
mentalidade ingênua não seria capaz, por outro lado, de perceber que a técnica, em
1 Escrito em fins de 1969, em Cambridge, Estados Unidos, este trabalho foi publicado, pela primeira vez,
por Harvard Educational Review. em 1970.
si mesma, como instrumento de que se servem os seres humanos em sua orientação
no mundo, não é neutra.
Mais de uma vez temos dedicado nossa atenção, através da análise de textos e
procedimentos usados em campanhas de alfabetização, para demonstrar as
afirmações que estamos fazendo. Façamos um exercício similar agora.
Tornemos como hipótese de trabalho duas cartilhas empregadas como textos básicos,
no esforço de alfabetização. Uma que, do ponto de vista do gênero, poderíamos
considerar má e outra que, do mesmo ângulo, seria boa. Suponhamos que o autor da
“boa” cartilha fez a seleção de suas palavras geradoras dando prioridade àquelas que
têm maior significação para um certo grupo de alfabetizandos (prática não muito
comum, mas de que há exemplos).
Indubitavelmente tal autor terá ido muito mais longe do que seu colega que preparou
sua cartilha com palavras geradoras escolhidas em sua biblioteca, exclusivamente
preocupado com a gradação das dificuldades fonéticas, Ambos os autores, porém, se
identificam num ponto fundamental. Em cada caso, eles mesmos são os que,
decompondo as palavras geradoras em sílabas, criam, com estas, novas palavras com
as quais formam frases e sentenças e, pouco a pouco, pequenas estórias, as assim
chamadas “lições de leitura”.
Digamos mesmo que o autor da segunda cartilha, indo um pouco mais longe, sugere
aos alfabetizadores que discutam com os alfabetizandos sobre uma ou outra palavra
geradora, bem como sobre um ou outro dos pequenos textos de leitura de sua
cartilha.
Considerando qualquer um dos dois exemplos aqui tratados podemos concluir,
legitimamente, que há implícita, no conteúdo e método das cartilhas, uma certa visão
dos seres humanos, não importa se os autores estão conscientes disto ou não. Esta
visão pode ser construída desde vários ângulos. Comecemos pelo fato, inerente à
idéia mesma de cartilha, de que é o seu autor ou autora o/a que escolhe as palavras
geradoras e, através dos alfabetizadores, as propõe ou impõe aos alfabetizandos. Na
medida em que, através da mediação da cartilha, os alfabetizadores vão
“depositando” nos alfabetizandos as palavras geradoras, pode-se facilmente detectar
uma primeira importante dimensão da imagem de ser humano que começa a emergir
desta análise. É um perfil de ser humano cuja consciência, “espacializada” e “vazia”,
deve ser “enchida” pare que possa conhecer. É a mesma concepção que levou Sartre,
criticando a noção de que “conhecer é comer”, a exclamar em Situations 1: “Oh!
philosophie alimentaire!”
Esta concepção “digestiva” do conhecimento, tão comum na prática educacional
corrente, se encontra claramente nas cartilhas.
Os analfabetos são considerados “subnutridos”, não no sentido real em que muitos o
são, mas porque lhes falta o “pão do espírito”. A compreensão do analfabetismo como
“erva daninha” que deve ser “erradicada” tem que ver com a visão do conhecimento
O chamado “controle de leitura”; as aulas verbosas; a memorização de diálogos no aprendizado de línguas;
as relações bibliográficas que indicam o capítulo e até as linhas, de tal palavra a tal outra, que devem ser
lidos; certos métodos de avaliação da aprendizagem dos estudantes revelam esta concepção “nutricionista”
do conhecimento.
como algo a ser comido. É necessário erradicar o analfabetismo e, para fazê-lo, urge
que os alfabetizandos se “alimentem” de palavras.
Desta forma, esvaziada de seu caráter de signo lingüístico, constitutivo do
pensamento-linguagem dos seres humanos, a palavra é transformada em mero
“depósito vocabular” – o “pão do espírito”, que os alfabetizandos devem comer e
digerir.
Esta visão “nutricionista” do conhecimento talvez explique também o caráter
humanitarista de certas campanhas latino-americanas de alfabetização. Se milhões de
homens e mulheres estão analfabetos, “famintos de letras”, “sedentos de palavras”, a
palavra deve ser levada a eles e elas para matar a sua “fome” e sua “sede”. Palavra
que, de acordo com a concepção “espacializada” e mecânica da consciência, implícita
nas cartilhas, deve ser “depositada” e não nascida do esforço criador dos
alfabetizandos.
Numa tal concepção é evidente que os alfabetizandos sejam vistos como puros
objetos do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como seus
sujeitos. Enquanto objetos, sua tarefa é “estudar”, quer dizer, memorizar as assim
chamadas lições de leitura, de caráter alienante, com pouquíssimo que ver, quando
têm, com a sua realidade sócio-cultural.
Seria, na verdade, um trabalho interessante analisar cartilhas e textos de leitura
usados em campanhas ou movimentos de alfabetização de adultos, oficiais ou não,
em áreas rurais ou urbanas, da América Latina. Facilmente se surprenderia o caráter
ideológico desses textos, mascarado de uma neutralidade que de fato não existe. Em
uma análise como esta, sem dificuldade, se encontrariam frases e pequenas estórias
como as que se seguem:
A asa é da ave.
Eva viu a uva.
O galo canta.
O cachorro ladra.
Maria gosta dos animais.
João cuida das árvores.
O pai de Carlinhos se chama Antônio.
Carlinhos é um menino bom, bem comportado e estudioso.
Se você trabalha com martelo e prego, tenha cuidado para não furar o dedo.
Pedro não sabia ler. Pedro vivia envergonhado. Um dia, Pedro foi à escola e se
matriculou num curso noturno. A professora de Pedro era muito boa. Pedro agora já
sabe ler, por isso, está feliz.
Vejam a cara de Pedro. Pedro está sorrindo.
Já tem um bom emprego. Todos devem seguir o seu exemplo.
Ao afirmar-se que Pedro está sorrindo porque já sabe ler e que é feliz porque tem
agora um bom emprego e que é um exemplo a ser se-guido por todos, se estabe1ece
no texto citado uma relação, na verdade inexistente, entre o fato de simplesmente
saber ler e obter um bom emprego. Esta ingenuidade – quando se trata realmente de
ingenuidade – revela a incapacidade de percepção do analfabetismo em suas
implicações políticas e sociais, de que resulta a sua redução a algo estritamente
lingüistico. Daí que, numa tal perspectiva, não se apreendam as relações entre o
Aqui, talvez o autor devesse ter acrescentado: “Se porém isto ocorrer, ponha mercúrio-cromo”.
analfabetismo e as estruturas da sociedade. É como se o analfabetismo fosse um
fenômeno aparte da realidade concreta ou a expressão da inferioridade intrínseca de
certas classes ou grupos sociais.
Incapaz de apreender o analfabetismo contemporâneo diretamente ligado à realidade
da dependência, este enfoque não pode dar uma respota crítica ao desafio que ele
coloca.
A mera aprendizagem da leitura e da escrita não faz milagres. Não é ela, em si
mesma, a que cria empregos.
Um destes manuaisapresenta em suas “lições de leitura” dois textos, em páginas
consecutivas, mas sem nenhuma referência explicita ao conteúdo dos mesmos. Numa
página se fala do lº de maio, enfatizando-se o caráter de dia feriado que ele tem.
Toca-se, de leve, nas comemorações em que ele implica, mas não se menciona a
natureza do conflito que gerou esta celebração.
O tema central da “lição” seguinte é feriado. Entre outras coisas se diz que, em dias
feriados, as pessoas devem ir à praia para nadar e bronzear-se... Portanto, se o lº de
maio é um dia feriado e se nos dias feriados o povo deve ir à praia para nadar e
bronzear-se, a conclusão insinuada no texto é a de que os trabalhadores, no Dia do
Trabalho, devem ir nadar e queimar-se ao sol...
A análise destes textos revela, não importa se seus autores são ingênuos ou astutos,
a ideologia da classe dominante que tem, na educação por ela posta em prática, um
instrumento eficiente para sua reprodução.
A asa é da ave Eva viu a uva, o galo canta, o cachorro ladra, são contextos
lingüísticos que, mecanicamente memorizados e repetidos, esvaziados de seu
conteúdo enquanto pensamento-linguagem referido ao mundo, se transformam em
meros clichês.
Seus autores, refletindo sua posição de classe, não podem reconhec er, nas classes
dominadas, a capacidade de conhecer, de criar seus próprios textos, com que
expressariam seu pensamento-linguagem. Repetem com os textos o que fazem com
as palavras, depositando-os na consciência dos alfabetizandos, como se esta fosse um
espaço vazio. Uma vez mais, a concepção nutricionista do conhecimento.
Há algo ainda implícito na ideologia das classes dominantes e que análise de cartilhas
e livros de leitura revela – o perfil dos analfabetos como seres marginais. Aqueles que
consideram os analfabetos como seres marginais devem, porém, reconhecer a
existência de uma realidade de que eles se encontram marginalizados – realidade que
não é apenas um espaço físico, mas econômico, histórico, social, cultural. Desta
maneira, os analfabetos têm de ser reconhecidos como seres “fora de” ou “marginais
a” alguma coisa, pois que seria impossível estarem marginais a nada. Mas estar “fora
de” implica em que, quem se encontra “ora de” fez um movimento do centro onde se
achava para a periferia. Admitindo a existência de homens e mulheres “fora de”,
marginais à estrutura da sociedade, parece legitimo perguntar: quem é o autor deste
movimento? Será que os chamados marginais, entre eles os analfabetos, tornam a
As frases e pequenas estórias que transcrevemos, talvez com alguma imprecisão, as temos de memória.
Faltam-nos, no momento, as cartilhas e os livros de leitura em que as encontramos. Esta é a razão por que
não fazemos referência a seus títulos bem como aos nomes de seus autores.
decisão de mover-se até a “periferia” da sociedade? Se assim é, a marginalidade é
uma opção, com tudo o que ela envolve: fome, doença, raquitismo, baixos índices de
expectativade vida, crime, promiscuidade, morte em vida, impossibilidade de ser,
desesperança.
De fato, porém, é difícil aceitar que 40% da população brasileira, quase 90% da do
Haiti, 60% da de Bolívia, em torno de 40% da do Peru, mais de 30% da do México e
da Venezuela e ao redor de 70% da de Guatemala, tivessem feito a trágica escolha de
sua marginalidade, como analfabetos.
Se então a marginalidade não é uma opção, os chamados marginais foram expulsos,
objetos, portanto, de uma violência. Na verdade, violentados, não se acham porém
“fora de”. Encontram-se dentro da realidade social, como grupos ou classes
dominadas, em relação de dependência com a classe dominante.
Em uma perspectiva menos rigorosa, simplista, menos crítica, tecnicista, se diria que
é uma perda de tempo refletir sobre estes pontos e se acrescentaria que a discussão
em torno do conceito de marginalidade é um exercício acadêmico desnecessário. Na
verdade, não é assim. Aceitando-se os analfabetos como homens e mulheres à
margem da sociedade, sem compreendê-los como classe dominada, termina-se por
tomá -los como homens e mulheres “enfermos” para quem o “remédio” seria a
alfabetização que permitiria seu regresso à estrutura “saudável” de que se encontram
separados.
Os educadores, por sua vez, serão vistos como conselheiros humanitários, infatigáveis
nas suas andanças pelos arredores da cidade, convencendo os pertinazes analfabetos
de que devem voltar ao seio da felicidade abandonada, de posse da palavra que os
educadores lhes “presenteiam”.
Analfabetos ou não, os oprimidos, enquanto classe, não superarão sua situação de
explorados a não ser com a transformação radical, revolucionária, da sociedade de
classes em que se encontram explorados.
Deste ponto de vista, já não são tomados como homens e mulheres marginais, mas
como classe dominada em relação antagônica, na intimidade mesma da sociedade,
com a classe dominante que os reduz a quase-coisas. .Assim, também, o ensino da
leitura e da escrita já não é a repetição mecânica de ba-be-bi-bo-bu nem a
memorização de uma palavra alienada, mas a difícil aprendizagem de nomear o
mundo
Na primeira hipótese, o processo de alfabetização reforça a mitificação da realidade,
fazendo-a opaca e embotando a consciência dos educandos com palavras e frases
alienadas.
No segundo caso, pelo contrário, o processo de alfabetização, como ação cultural para
a libertação, é um ato de conhecimento em que os educandos assumem o papel de
sujeitos cognoscentes em diálogo com o educador, sujeito cognoscente também. Por
isto, é uma tentativa corajosa de desmitologização da realidade, um esforço através
do qual, num permanente tomar distância da realidade em que se encontram mais ou
menos imersos, os alfabetizandos dela emergem para nela inserirem-se criticamente.
UNESCO – La situación educativa en América Latina – quadro 20, pág 263, Paris, 1960
Tão política quanto a ação desenvolvida na primeira hipótese, a segunda se distingue
da primeira porque sua política é a da classe dominada, enquanto a daquela é a da
classe dominante. Dai que, no primeiro caso, tudo se faça para evitar que os
alfabetizandos desenvolvam a consciência critica de si em suas relações com a
realidade e, no segundo, tudo deva ser feito para que os alfabetizandos se assumam
como “classe para si”. A consciência cntica dos oprimidos segnifica, pois, consciência
de si, enquanto “classe para si”.
Por isso também é que, no primeiro caso, a alfabetização, mesmo feita em amplas
“campanhas” ou “movimentos”, jamais se faz numa linha de massas em que estas,
mobilizadas, organizam-se e organizam o processo de sua aprendizagem.
O educador que faz a segunda opção, sobretudo se é um intelectual pequenoburguês,
deve esforçar-se, cada vez mais, por iluminar sua ação na sua prática com
as massas populares, com quem tem muito que aprender. Só assim se tornará
verdadeiramente capaz de assumir o papel de um dos sujeitos desta ação e manterse
coerente com a opção que fez.
b) O processo de alfabetização de adultos
como um ato de conhecimento
Para ser um ato de conhecimento o processo de alfabetização de adultos demanda,
entre educadores e educandos, uma relação de autêntico diálogo. Aquela em que os
sujeitos do ato de conhecer (educador-educando; educando-educador) se encontram
mediatizados pelo objeto a ser conhecido. Nesta perspectiva, portanto, os
alfabetizandos assumem, desde o começo mesmo da ação, o papel de sujeitos
criadores. Aprender a ler e escrever já não é, pois, memorizar sílabas, palavras ou
frases, mas refletir criticamente sobre o próprio pro cesso de ler e escrever e sobre o
profundo significado da linguagem.
Assim como não é possível linguagem sem pensamento e linguagem-pensamento sem
o mundo a que se referem, a palavra humana é mais que um mero vocábulo – é
palavração.
Enquanto ato de conhecimento, a alfabetização, que leva a sério o problema da
linguagem, deve ter como objeto também a ser desvelado as relações dos seres
humanos com seu mundo.
A análise destas relações começa a aclarar o movimento dialético que há entre os
produtos que os seres humanos criam ao transformarem o mundo e o
condicionamento que estes produtos exercem sobre eles. Começa a aclarar,
igualmente, o papel da prática na constituição do conhecimento e,
conseqüentemente, o rol da reflexão critica sobre a prática. A unidade entre prática e
teoria, ação e reflexão, subjetividade e objetividade, vai sendo compreendida, em
termos corretos, na análise daquelas relações antes mencionadas.
Aprender a ler e escrever se faz assim uma oportunidade para que mulheres e
homens percebam o que realmente significa dizer a palavra: um comportamento
humano que envolve ação e reflexão. Dizer a palavra, em um sentido verdadeiro, é o
direito de expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar.
Como tal, não é o privilégio de uns poucos com que silenciam as maiorias. É
exatamente por isto que, numa sociedade de classes, seja fundamental à cesse
dominante estimular o que vimos chamando de cultura do silêncio, em que as classes
dominadas se acham semimudas ou mudas, proibidas de expressar-se
autenticamente, proibidas de ser.
Os analfabetos sabem que são seres concretos. Sabem que fazem coisas. Mas o que
às vezes não sabem, na cultura do silêncio, em que se tornam ambíguos e duais, é
que sua ação transformadora, como tal, os caracteriza como seres criadores e
recriadores. Submetidos aos mitos da cultura dominante, entre eles o de sua “natural
inferioridade”, não percebem, quase sempre, a significação real de sua ação
transformadora sobre o mundo. Dificultados em reconhecer a razão de ser dos fatos
que os envolvem, é natural que muitos, entre eles, não estabeleçam a relação entrh
não “ter voz”, não “dizer a palavra”, e o sistema de exploração em que vivem.
Gostariamos de salientar que toda tentativa de desenvolver um tal reconhecimento
fora da práxis, fora da ação e da reflexão, nos pode conduzir a puro idealismo. Mas,
por outro lado, é verdade também que toda ação sobre um objeto deve ser
criticamente analisada no sentido de compreender-se não apenas o objeto mas
também a percepção que dele se tinha ou se tem ao atuar-se sobre ele. O ato de
conhecer envolve um movimento dialético que vai da ação à reflexão sobre ela e
desta a uma nova ação. Para o educando conhecer o que antes não conhecia, deve
engajar-se num autêntico processo de abstração por meio do qual reflete sobre a
totalidade “ação-objeto” ou, em outras palavras, sobre formas de “orientação no
mundo”. Este processo de abstração se dá na medida em que se lhe apresentam
situaçõesrepresentativas da maneira como o educando “se orienta no mundo” –
momentos de sua quotidianeidade – e se sente desafiado a analisá-las criticamente.
Ao ser uma reflexão crítica de ambos, educador-educando e educando-educador, o
processo de alfabetização deve relacionar o ato de transformar o mundo com o ato de
“pronunciá-lo”.
Não há “pronúncia” do mundo sem consciente ação transformadora sobre o mesmo.
“Ação consciente” a que Marx várias vezes se referiu. Mas é necessário sublinhar-se,
também, que há diferentes maneiras de “pronunciar o mundo”. A das classes
dominantes, que determina o silêncio das classes dominadas ou a aparência de sua
voz, na sua recuperação por aquelas, e a das classes dominadas, que demanda sua
organização revolucionária para a abolição das estruturas de opressão.
A percepção de tudo isto é indispensável aos alfabetizandos, se nossa opção é
realmente libertadora. Tal percepção os ajuda a rejeitar o perfil que deles fazem as
classes dominantes como “marginais” e a encarnar-se como classe dominada, cuja
tarefa não se esgota em serem mecanicamente alfabetizados, mas lhes impõe o dever
de “pronunciar o mundo” à sua maneira.
Por outro lado, a alfabetização, como um ato de conhecimento, pressupõe uma teoria
do conhecimento e um método que corresponde a esta teoria.
Como um ato de conhecimento, o processo de alfabetização implica na existência de
dois contextos dialeticamente relacionados. Um é o contexto do autêntico diálogo
entre educadores e educandos, enquanto sujeitos de conhecimento. É o contexto
teórico. O outro é o contexto concreto, em que os fatos se dão – a realidade social em
que se encontram os alfabetizandos.
O autor se refere a “codificações”. (N.E.)
No contexto teórico, “tomando-se distância” do concreto, se analisam criticamente os
fatos que neste se dão. Esta análise envolve o exercício da abstração através da qual,
por meio de representações da realidade concreta, procuramos alcançar a razão de
ser dos fatos. O meio de que nos servimos em nossa prática para operar tal abstração
é a codificação ou a representação de situações existenciais dos educandos.
A codificação, de um lado, faz a mediação entre o contexto concreto e o teórico; de
outro, como objeto de conhecimento, mediatiza os sujeitos cognoscentes que
buscam, em diálogo, desvelá-la. Por isto é que, sendo o selo do ato cognoscente, o
diálogo não tem nada que ver, de um lado, com o monólogo do educador “bancário”;
de outro, com o silêncio espontaneista de certo tipo de educador liberal. O diálogo
engaja ativamente a ambos os sujeitos do ato de conhecer educador-educando e
educando-educador.
A codificação, mesmo quando puramente pictórica, é. um “discurso” a ser “lido” por
quem procura decifrá-la. Como tal, apresenta o que Chomsky chama de “estrutura de
superfície” e “estrutura profunda”. A “estrutura de superfície” explícita os elementos
constitutivos da codificação de maneira puramente taxeonômica.
O primeiro momento da descodificação – ou “leitura” – é descritivo. A este nível, os
“leitores” – descodificadores – narram mais do que analisam, alinham as diferentes
categorias constitutivas da codificação.
Suponhamos, por exemplo, a codificação de uma situação de trabalho no campo. A
“estrutura de superfície” desta codificação seria representada por diferentes dados: a
presença de mulheres e de homens trabalhando com alguns instrumentos; a figura do
patrão, no seu cavalo; árvores, pássaros, animais etc. O primeiro momento da
“leitura” ou descodificação se centra na descrição daqueles dados. “Vemos dois
homens e três mulheres trabalhando. O patrão olha eles de seu cavalo. Lá longe tem
umas árvores. Tem também uns passarinhos nos galhos. E animal pastando. O céu
escuro indica chuva” etc.
Esta aproximação preliminar à “estrutura de superfície” é seguida pela
problematização da situação codificada, com que se chega ao segundo e fundamental
momento da descodificação. É neste momento que se pode alcançar a compreensão
da “estrutura profunda” da codificação, que abre possibilidades a análises críticas em
torno da realidade codificada.
Assim, se no primeiro momento, o que se faz é preponderantemente mirar a
codificação, no segundo, ela é “ad-mirada”. Naquele se diz apenas que há homens e
mulheres trabalhando, que o patrão os observa de seu cavalo etc.; neste, se discute a
significação do trabalho, as relações entre os trabalhadores e o patrão; o problema da
produção, quem lucra com ela etc.
Na “estrutura profunda” desta codificação hipotética há um mundo de problemas a ser
discutidos e que se encontram apontados na sua “estrutura de superfície”. Isto é o
que se dá com qualquer codificação que, ao ser bem descodificada, proporciona aos
educandos um nível mais crítico de conhecimento de sua realidade, partindo da
análise de seu contexto concreto.
Em nossa prática usamos codificações ora feitas por nós, ora pelos educandos; às
vezes fotografias, às vezes desenhos; já um pequeno texto, já uma pequena
dramatização em torno de um fato concreto.
O importante, qualquer que seja a forma que a codificação assuma – e há outras – é
que ela seja tomada, na verdade, como um objeto de conhecimento. É que dela
“tomando distância”, no processo de sua descodificação, educador e educandos
alcancem a compreensão de sua “estrutura profunda”. Daí a necessidade de um
máximo de cuidado durante a descodificação que, num momento, é a cisão que se faz
da codificação em suas partes constitutivas, em outro, é a retotalização do que foi
cindido. Neste esforço, os educandos, como sujeitos cognoscentes, percebem relações
entre os fatos sobre que discutem que antes não percebiam.
A codificação, em última análise, no contexto teórico, transforma a quotidianeidade
que ela representa num objeto cognoscivel. Desta forma, era lugar de receberem uma
explicação em torno deste ou daquele fato, os educandos analisam, com o educador,
aspectos de sua própria prática, em suas implicações mais diversas. Neste sentido,
nos Círculos de Cultura, os alfabetizandos se engajam na prática da teoria de sua
prática. E é pensando sobre sua prática, em termos cada vez mais críticos, que os
educandos vão substituindo a visão focalista da realidade por outra, global.
Do ponto de vista da teoria do conhecimento que aqui defendemos, isto significa que
o dinamismo entre a codificação de situações existenciais e sua descodificação
compromete os educandos num permanente processo de ad-mirar sua anterior admiração
da realidade.
“Ad-mirar” e “ad-mirado” não têm aqui sua significação usual. Ad-mirar é objetivar
um “não-eu”. É uma operação que, caracterizando os seres humanos como tais, os
distingue do outro animal. Está diretamente ligada à sua prática consciente e ao
caráter criador de sua linguagem. Ad-mirar implica pôr-se em face do “não-eu”,
curiosamente, para compreendê-lo. Por isto, não há ato de conhecimento sem admiração
do objeto a ser conhecido. Mas se o ato de conhecer é um processo – não há
conhecimento acabado – ao buscar conhecer ad-miramos não apenas a objeto, mas
também a nossa ad-miração ante-rior do mesmo objeto. Quando ad-niiramos nossa
anterior ad-miração (sempre uma ad-miração de) estamos simultaneamente
admirando o ato de ad-mirar e o objeto ad-mirado, de tal modo que podemos superar
erros ou equívocos possivelmente cometidos na ad-miração passada. Esta re-admiração
nos leva à percepção da percepção anterior. Talvez não seja demasiado
insistir em que este esforço, desenvolvido no contexto teórico, se esvazia, se se
rompe a unidade dialética entre este contexto e o contexto concreto. Em outras
palavras, se se rompe a unidade dialética entre prática e teoria.
No processo de descodificar representações de sua situação existencial e de perceber
sua percepção anterior dos mesmos fatos, os alfabetizandos, gradualmente, às vezes
hesitante e timidamente, começam a questionar a opinião que tinham da realidade e
a vão substituindo por um conhecimento cada vez mais crítico da mesma.
Suponhamos que propuséssemos a indivíduos de grupos ou classes dominadas
codificações que mostrassem sua tendência, a seguir os modelos culturais dos
dominadores (tendência que têm os dominados em certo momento de suas relações
com os dominadores). É possível que resistissem às codificações, considerando-as
falsas, talvez mesmo ofensivas. Na medida, porém, em que se aprofundassem em
sua análise, começariam a perceber que sua aparente imitação dos modelos do
dominador é o resultado da introjeção daqueles modelos e, sobretudo, dos mitos
A este propósito, ver Frantz Fanon, Os condenados da Terra, e Albert Memmi, Retrato do Colonizado
Precedido pelo Retrato do Colonizador, Ed. Paz e Terra. Rio, 1977, 2ª ed.
sobre a pseudo-superioridade das classes dominantes a que corresponde a pseudoinferioridade
dos dominados. Assim, o que, de fato, é introjeção, aparece, numa
análise ingênua, como se fosse pura imitação. Basicamente, como tentei aclarar em
Pedagogia do Oprimido, quando certos setores das classes dominadas reproduzem o
estilo de vida das classes dominantes, é que estas se encontram na “intimidade” do
ser daquelas. Os oprimidos extrojetam aos opressores quando, tomando distância
deles, os objetivam. Identificando-os, reconhecem-nos, então, como seus
antagonistas.
Na medida, porém, em que a introjeção dos valores dos dominadores não é um
fenômeno individual mas social e cultural, sua extrojeção, demandando a
tranformação revolucionária das bases materiais da sociedade, que fazem possível tal
fenômeno, implica também numa certa forma de ação cultural. Ação cultural através
da qual se enfrenta, culturalmente, a cultura dominante. Os oprimidos precisam
expulsar os opressores não apenas enquanto presenças físicas, mas também
enquanto sombras míticas, introjetadas neles. A ação cultural e a revolução cultural,
em diferentes momentos do processo de libertação, que é permanente, facilitam esta
extrojeção.
Os educandos necessitam descobrir o que há por trás de muitas de suas atitudes em
face da realidade cultural para assim enfrentá-la de forma diferente. A ad-miração de
sua anterior ad-miração da realidade é necessária para que isto se faça.
A capacidade que têm os educandos de conhecer em termos críticos – de ir mais além
da mera opinião – se vai estimulando no processo de desvelamento de suas relações
com o mundo histórico-cultural. Mundo de que os seres humanos são os criadores.
Não queremos com isto dizer – e temos sido bastante reiteradores neste trabalho –
que o conhecimento critico das relações seres humanos-mundo surja como resultado
de um jogo intelectualista.
Como algo que se constituísse fora da prática. A prática está compreendida nas
situações concretas que são codificadas para serem submetidas à análise critica.
Analisar a codificação em sua “estrutura profunda” é, por isso mesmo, repensar a
prática anterior e preparar-se para uma nova e diferente prática, se este for o caso.
Daí a necessidade, antes referida, de jamais romper-se a unidade entre o contexto
teórico e o contexto concreto, entre teoria e prática.
Evidentemente, naquele contexto, ao propor-se aos educandos a análise de sua
prática anterior, implícita na codificação, o educador não poder furtar-se, em
determinados momentos, de informar. E não pode na medida mesma em que
conhecer não é adivinhar. O fundamental, porém, é que a informação seja sempre
precedida e associada à problematização do objeto em torno de cujo conhecimento
ele dá esta ou aquela informação. Desta forma, se alcança uma síntese entre o
conhecimento do educador, mais sistematizado, e o conhecimento do educando,
menos sistematizado – síntese que se faz através do diálogo.
A responsabilidade do educador, numa perspectiva como esta, é, então, maior que a
de seu colega, cuja tarefa se reduz à transferência de informa ções a serem
memorizadas pelos educandos. Tal educador – o transmissor de informações – pode
A este respeito ver Fanon, op. cit.
simplesmente repetir o que leu e às vezes nem sequer entendeu bem, uma vez que,
para ele (ou ela) a educação não é um verdadeiro ato de conhecimento.
O primeiro tipo de educador, pelo contrário, é um sujeito de conhecimento, face a
face com outros sujeitos de conhecimento. Jamais pode ser um memorizador, mas
alguém que constantemente refaz sua capacidade de conhecer no exercício que desta
mesma capacidade fazem os educandos. Para ele a educação envolve sempre uma
certa teoria do conhecimento posta em prática. Ele sabe, porém, que nem todo
diálogo é, em si, a marca de uma relação de verdadeiro conhecimento.
O intelectualismo socrático – que tornava a definição do conceito como o
conhecimento da coisa definida e o conhecimento mesmo como virtude, não
constituía uma verdadeira pedagogia do conhecimento, mesmo que fosse dialógica. A
teoria platônica do diálogo não conseguiu ir muito mais além de Sócrates, ainda que,
para Platão, a “prise de conscience” fosse uma das condições necessárias ao ato de
conhecimento e que alcançar a verdade implicasse na superação da “doxa” pelo
“logos”.
Para Platão, porém, a “prise de conscience” não se referia ao que os seres humanos
soubessem ou não soubesse ou soubessem equivocadamente em torno de suas
relações dialéticas com o mundo. Tinha que ver com o que os seres humanos um dia
souberam e de que se esqueceram ao nascer. Conhecer era, pois, relembrar ou
recuperar um conhecimento olvidado. A apreensão da “doxa” e do “logos” e a
superação daquela por este não se dava na compreensão dialética das relações seres
humanos-mundo, mas no esforço de recordar um “logos” esquecido.
Para que o diálogo seja o selo do ato de um verdadeiro conhecimento é preciso que
os sujeitos cognoscentes tentem apreender a realidade cientificamente no sentido de
descobrir a razão de ser da mesma – o que a faz ser como está sendo. Assim,
conhecer não é relembrar algo previamente conhecido e agora esquecido. Nem a
“doxa” pode ser superada pelo “logos” fora da prática consciente dos seres humanos
sobre a realidade.
Para ser um ato de conhecimento, o processo de alfabetização de adultos deve, de
um lado, necessariamente, envolver as massas populares num esforço de mobilização
e de organização em que elas se apropriam, como sujeitos, ao lado dos educadores,
do próprio processo. De outro, deve engajá-las na problematização permanente de
sua realidade ou de sua prática nesta.
As codificações, através de que se faz a problematização da realidade, trazem em si a
palavra geradora a elas referida ou a algum de seus aspectos.
Uma investigação preliminar nos oferece o “universo lingüístico mínimo” dos
alfabetizandos, do qual retiramos as palavras geradoras com que se organiza o
programa.
As palavras são escolhidas,
a) em função de seu conteúdo pragmático, enquanto signos lingüísticos que
correspondem a um entendimento comum numa área de uma cidade, numa região de
um país (nos Estados Unidos, por exemplo, a palavra “soul”, alma, tem uma
significação especial entre as populações negras), e
b) em função de suas dificuldades fonéticas que devem ser propostas, gradualmente,
aos alfabetizandos.
Finalmente, é interessante que a primeira palavra geradora seja trissilábica. É que, ao
ser decomposta em sílabas, constituindo cada uma delas uma família silábica, oferece
aos alfabetizandos a possibilidade de experimentar várias combinações, na sua
primeira intimidade com a palavra escrita.
Escolhidas as 17 palavras geradoras, o passo seguinte será codificar 17 situações
familiares aos alfabetizandos. Não será demasiado reafirmar que as palavras
geradoras devem ser introduzidas nas codificações, obedecendo-se à gradação de
suas dificuldades fonéticas.
Estas codificações, sublinhemos uma vez mais, são objetos de conhecimento que, nos
Círculos de Cultura – contextos teóricos – se dão ao desvelamento dos sujeitos
cognoscentes – educador-educando, educando-educador.
No Brasil, antes de ser iniciado o trabalho de descodificação das situações concretas
em que se achavam as palavras geradoras, propúnhamos uma série de outras
codificações, cuja análise tornava possível a compreensão das relações seres
humanos-mundo.
No Chile, de modo geral, os alfabetizandos exigiam que se começasse imediatamente
a trabalhar com as palavras. Esta reação levou os educadores chilenos a propor a
discussão em torno das relações seres humanos-mundo, quando da descodificação de
situações a que já se ligava uma palavra geradora. O fundamental é que esta análise
seja feita, não importa se no começo, como no caso brasileiro, ou se durante o
processo da alfabetização. Análise que, partindo das relações entre os seres humanos
e o mundo natural, se estende ao mundo da cultura e da história, à compreensão da
realidade social dos alfabetizandos.
Assim, se a palavra favela, no caso brasileiro e a palavra “callampa” no chileno, são
palavras geradoras em áreas faveladas ou “callamperas” nesses países, é óbvio que
as codificações em que devem estar postas devam representar aspectos da realidade
favelada.
A análise das relações entre os seres humanos e o mundo leva necessariamente à
reflexão sobre a maneira de se estar sendo numa favela ou “callampa”.
Em nossa experiência observamos, não raras vezes, como, no processo de
descodificação de uma situação de favela, a análise aprofundada da situação ia
fazendo possível a sobrepassagem de um estado de percepção no qual – poderíamos
dizer com uma metáfora que talvez não expresse bem o que queremos descrever – os
favelados se achavam “assumidos” pela situação, por um outro em que eles a
“assumiam”. Esta análise por parte dos favelados reflete, naturalmente, aspectos da
ideologia das classea dominantes introjetados por eles mas, também, algo
fundamental que lhes pertence e em que se amuralham instintivamente para
defender-se e preservar-se. Suas atividades noturnas, seus bailes, sua música, o uso
do corpo, seus gestos, sua maneira de andar, de vestir, suas crenças, sua ironia, seu
humor, seus códigos de companheirismo, sua forma de “desapertar-se” de situações
difíceis, sua semântica, sua sintaxe, tudo isto constitui sua linguagem, como
A este propósito ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade. (N. E.)
“linguagem total”, e são valores que compõem aquela muralha e que, mesmo tocados
pela ideologia dominante, não se entregam totalmente a ela;
Não queremos dizer, contudo,que não haja debilidades neste universo cultural, que
deve ser compreendido em sua relação dialética com o dominante e não simétrica.
Debilidades que devem igualmente ser problematizadas.
O Movimento Independente Revolucionário – MIR – no Chile, foi bastante lúcido para
perceber o potencial revolucionário dessas populações ditas “marginais”.
Estamos convencidos, não por ouvir dizer, mas por nossa prática e pelas observações
de outras práticas, das conseqüências positivas inegáveis de um esforço paciente – a
paciência também uma virtude revolucionária, que tem, como seu oposto, a
impaciência revolucionarista – de capacitação política dessas populações, com que
elas se assumam como classe.
Sem o conhecimento sério, responsável, de como estas populações transformam, na
sua prática, sua fraqueza em força, é impossível uma comunicação válida com elas.
Sem este conhecimento, o que fazemos, enquanto intelectuais pequeno-burgueses, é
“invadí-las”, em termos distintos da invasão que as classes dominantes já fazem, mas
invasão sempre – uma espécie de “colonialismo revolucionário”.
Àqueles e àquelas que vêem estas populações como “naturalmente inferiores e
incapazes” e atribuem a esta “inferioridade” todas as deficiências materiais que
caracterizam uma favela, sugeriríamos que discutissem um dia com favelados sobre o
que significa sua existência. Talvez alguns entre esses senhores e essas senhoras
descobrissem afinal que, se há algo intrínsecamente mau, que deve ser radicalmente
transformado e não simplesmente reformado, é o sistema capitalista mesmo, incapaz,
ele sim, de resolver o problema com seus intentos “modernizantes”.
Gostariamos de salientar que esta visão ideológico-dominante é a mesma que se
encontra na base do perfil que as sociedades metropolitanas fazem do Terceiro Mundo
como um todo. Daí que o subdesenvolvimento apareça para muitos teóricos
metropolitanos como expressão de atraso, de incapacidade. O Terceiro Mundo, como
um mundo “marginal” – uma espécie de favela maior – sem nenhuma viabilidade
histórica própria e cuja “salvação” por isso mesmo se encontra em seguir, docilmente,
os modelos estabelecidos de fora. Modelos de sociedades metropolitanas, no fundo,
modelos das classes dominantes destas sociedades. Os interesses expansionistas
destas classes, aos quais se atrelam os das classes dominantes das sociedades
dependentes – Primeiro Mundo do Terceiro – estão implícitos nestas noções.
Assim, a “salvação” do Terceiro Mundo pelas classes dominantes das sociedades
metropolitanas, através de todos os mecanismos demasiado conhecidos, significa a
preservação de sua dependência por meio da modernização de suas estruturas. Por
isso é que somente as classes e grupos dominados do Terceiro Mundo – verdadeiro
Terceiro Mundo do Terceiro – com uma vanguarda revolucionária lúcida, podem
encarnar a utopia de sua libertação, o sonho possível de sua independência, de seu
real desenvolvimento, que não tem nada que ver com a modernização capitalista.
Neste sentido, a pedagogia que defendemos, concebida na prática realizada numa
área significativa do Terceiro Mundo, é, em si, uma pedagogia utópica. Utópica, não
porque se nutra de sonhos impossíveis, porque se filie a uma perspectiva idealista,
porque implicite um perfil abstrato de ser humano, porque pretenda negar a
existência das classes sociais ou, reconhecendo-a, tente ser um chamado às classes
dominantes para que, admitindo-se em erro, aceitem engajar-se na construção de um
mundo de fraternidade.
Utópica porque, não “domesticando” o tempo, recusa um futuro pré-fabricado que se
instalaria automaticamente, independente da ação consciente dos seres humanos.
Utópica e esperançosa porque, pretendendo estar a serviço da libertação das classes
oprimidas, se faz e se refaz na prática social, no concreto, e implica na dialetização da
denúncia e do anúncio, que têm na práxis revolucionária permanente, o seu momento
máximo.
Por isso, denúncia e anúncio, nesta pedagogia, não são palavras vazias, mas
compromisso histórico. Por outro lado, a denúncia da sociedade de classes como uma
sociedade de exploração de uma classe por outra exige um cada vez maior
conhecimento cientifico de tal sociedade e, de outro, o anúncio da nova sociedade
demanda uma teoria da ação transformadora da sociedade denunciada.
A denúncia e o anúncio tornam corpo quando as classes dominadas os assumem,
assim como a teoria da ação transformadora – a teoria revolucionária – se efetiva
quando é igualmente assumida por aquelas classes.
O caráter utópico desta pedagogia é tão permanente quanto a educação mesma. Seu
mover-se entre a denúncia e anúncio não se esgota quando a realidade denunciada
hoje cede seu lugar à nova, mais ou menos anunciada naquela denúncia.
É bem verdade, porém, que há uma diferença fundamental entre o ato da denúncia e
do anúncio numa sociedade de classes e o mesmo ato numa sociedade que se refaz
numa perspectiva socialista. De qualquer maneira, quando a educação já não é
utópica, isto é, quando já não se faz na desafiante unidade da denúncia e do anúncio,
é porque o futuro perde sua real significação ou porque se instala o medo de viver o
risco do futuro como superação criadora do presente que envelhece.
Não há anúncio sem denúncia, assim como toda denúncia gera anúncio. Sem este, a
esperança é impossível. Mas, numa autenticamente utópica, não há como falar em
esperança se os braços se cruzam e passivamente se espera. Na verdade, quem
espera na pura espera vive um tempo de espera vã. A espera só tem sentido quando,
cheios de esperança, lutamos para concretizar o futur.o anunciado, que vai nascendo
na denúncia militant e.
Não pode haver esperança verdadeira, também, naqueles que tentam fazer do futuro
a pura repetição de seu presente, nem naqueles que vêem o futuro como algo
predeterminado. Têm ambos uma noção “domesticada” da História. Os primeiros,
porque pretendem parar o tempo; os segundos, porque estão certos de um futuro já
“conhecido”. A esperança utópica, pelo contrário, é engajamento arriscado. É por isso
que as classes dominantes, que apenas podem denunciar a quem as denuncia e nada
podem anunciar a não ser a preservaçao do “status quo” não podem ser, jamais,
utópicas nem proféticas.
Uma pedagogia utópica da denúncia e do anúncio tem de ser um ato de conhecimento
da realidade denunciada, ao nível da alfabetização ou da post -alfabetização, enquanto
ação cultural para a libertação. Daí a ênfase que damos à constante problematização
da realidade concreta dos alfabetizandos, representada em situações codificadas.
Quanto mais a problematização avança e os sujeitos descodificadores se adentram na
“intimidade” do objeto problematizado, tanto mais se vão tornando capazes de
desvelá-lo.
É preciso, contudo, fazer aqui dois comentários. Primeiro, que não têm sido raras as
vezes, em nossa prática e na prática de outros, de que temos tido conhecimento, em
que os participantes dos Círculos de Cultura resistem a reconhecer a situação
codificada como expressão de sua realidade. E não porque a codificação seja, na
verdade, estranha a ela, pelo contrário, recusam-na precisamente porque a reflete.
Repete-se, em tais casos, a mesma resistência que ocorre no diálogo psicoterapêutico
em que um dos pólos se nega a tomar a sua alienação nas próprias mãos para
analisá-la nas suas razões mais profundas. Em vez da “arqueologia” do sofrimento,
prefere-se, assim, “soterrar” mais ainda o sofrimento.
Esta reação de rechaço, a que temos feito referência em outros trabalhos, começa às
vezes no momento em que os descodificadores estão ainda ao nível da “estrutura de
superfície” da codificação, em que simplesmente descrevem os elementos
constitutivos da mesma e se reforça quando se tenta alcançar a codificação na sua
“estrutura profunda”. Esta recusa desaparece, porém, na medida em que os
participantes se engajam numa forma de ação político-revolucionária. Aqui chegamos
ao segundo comentário que gostariamos de fazer. Repitamos a afirmação que está
provocando estas considerações. Quanto mais a problematização avança e os sujeitos
descodificadores se aden-tram na “intimidade” do objeto, tanto mais se vão tornando
capazes de desvelá-la. Este é um fato também, mais generalizado em nossa experiência
do que a recusa anteriormente referida. Considerando, porém, que o ato de
desvelar a realidade, indiscutivelmente importante, não significa o engajamento
automático na ação transformadora da mesma, o problema que se nos apresenta é o
de encontrar,em cada realidade histórica, os caminhos de ida e volta entre o
desvelamento da realidade e a prática dirigida no sentido de sua transformação.
Nestes caminhos de ida e volta é que se faz viável aos oprimidos assumir-se como
“classe para si”, esperançosamente utópicos.
A conscientização se autentica nesta ida e volta que é, em última análise, a unidade
dialética entre prática e teoria, em que aprendemos que a verdadeira paciência não
se indentifica, jamais, com a espera na pura espera. A verdadeira paciência,
associada sempre à autêntica esperança, caracteriza a atitude dos que sabem que,
para fazer o impossível, é preciso torná-lo possível. E a melhor maneira de tornar o
impossível possível é realizar o possível de hoje.
Vista assim, a conscientização não vem antes ou depois da alfabetização. Ela se dá
neste como na post-alfabetização ou em atividades de educação política envolvendo
analfabetos e não necessariamente ligadas a um esforço alfabetizador.
Voltando à alfabetização, insistiremos em reafirmar que jamais tornamos a palavra
como algo estático ou desconectado da realidade concreta dos alfabetizandos, mas
como uma dimensão de sua linguagem-pensamento em torno de seu mundo. Por isto,
quando eles participam criticamente da decomposição das primeiras palavras
geradoras associadas à sua experiência quotidiana; quando identificam as “famílias
silábicas” que resultam daquela decomposição; quando percebem o mecanismo de
combinações silábicas de sua língua, descobrem, finalmente, nas várias possibilidades
de combinações, suas próprias palavras. Pouco a pouco, na medida em que essas
possibilidades se vão multiplicando através do domínio de novas palavras geradoras,
os alfabetizandos vão ampliando não apenas seu vocabulário, mas também sua
capacidade de expressão pelo desenvolvimento de sua capacidade criadora.
No Chile, em algumas áreas em que se fazia a reforma agrária, os camponeses que
participavam de programas de alfabetização costumavam escrever palavras com seus
próprios instrumentos, no chão dos caminhos que os conduziam ao trabalho. “Estes
homens são semeadores de palavras”, disse, certa vez, Maria Edi Ferreira, socióloga
que fazia parte da equipe, em Santiago, do Instituto de Capacitación e Investigación
en Reforma Agrária. Naturalmente, não apenas “semeavam” palavras, mas também,
discutindo idéias, ancoradas na sua prática real, percebiam cada vez mais claramente
seu novo papel no “asentamiento”.
Perguntamos a um destes “semeadores de palavras”, recém-alfabetizada, por Que ele
não havia aprendido a ler e a escrever antes da reforma agrária.
“Antes da reforma agrária, meu amigo, disse ele, eu nem sequer pensava. Nem eu
nem meus companheiros”.
“Por quê?”, perguntamos.
“Porque não era possível. Vivíamos sob ordens. Tínhamos apenas que obedecer a
elas. Não tínhamos nada que dizer”, respondeu enfaticamente.
A resposta simples deste camponês nos introduz, claramente, à compreensão do que
é a “cultura do silêncio”. Na cultura do silêncio existir é apenas viver. O corpo segue
ordens de cima. Pensar é difícil; dizer a palavra, proibido.
“Quando todas estas terras pertenciam a um latifúndio, disse outro homem na mesma
conversação, não havia razão para ler e escrever. Não tínhamos nenhuma
responsabilidade. O patrão dava as ordens e nós obedecíamos. Por que ler e escrever
em tal situação? Agora as coisas são diferentes. Veja meu caso, por exemplo. No
‘asentamiento’, não apenas trabalho cerno todos os companheiros, mas sou o
responsável pelo reparo dos instrumentos. Quando comecei, não sabia ler nem
escrever. Você não pode imaginar o que significava para mim ir a Santiago comprar
acessórios. Eu me perdia. Tinha medo de tudo – medo da cidade grande, de comprar
errado, de ser enganado. Agora as coisas são diferentes”.
Observe-se como este camponês descreve sua anterior experiência de analfabeto:
sua desconfiança, seu medo mágico, mas lógico, da grande cidade, sua timidez. E
observe-se a segurança com que repete: “Agora, as coisas são diferentes”.
“Que sentiu você, amigo – perguntamos a outro ‘semeador de palavras’, em
oportunidade diferente – quando pôde escrever e ler sua primeira palavra?”
Depois da desapropriação das terras, na reforma agrária chilena, os camponeses, que eram trabalhadores
assalariados nos grandes latifúndios, se tornavam “assentados” durante um período de três anos em que
recebiam uma variada assistência do governo através da Corporación de la Reforma Agrária. Este período de
"asentamiento” precedia ao da entrega das terras aos camponeses. Naturalmente tudo isto se acabou, com a
queda do governo Allende. (Nota atualizada)
“Eu me senti feliz, porque descobri que podia fazer que as palavras falassem”,
respondeu.
“Em nossas conversações com os camponeses – diz Dario Salas,ficávamos
surpreendidos com as imagens que usavam para expressar seu interesse e sua
satisfação com a alfabetização. Por exemplo: “Antes eu era cego, agora o véu já nao
cobre meus olhos”. “Eu vim aprender a assinar o nome. Jamais acreditei que, em
minha idade, pudesse realmente aprender a ler”. “Antes as letras me pareciam
pequenos brinquedos. Hoje, elas me dizem algo e eu as posso fazer falar”.
“É comovedor, continua Salas, observar o deleite dos camponeses quando o mundo
das palavras se abre a eles. Às vezes,dizem: Estamos cansados, a cabeça nos dói,
mas não queremos sair daqui sem saber ler e escrever”.
As palavras que se seguem foram gravadas durante uma investigação de “temas
geradores” num dos “asentamientos”. São a descodificação que um dos participantes
fez da codificação que o grupo tinha como objeto de análise.
“Vemos lá longe uma casa. Uma casa triste como se estivesse abandonada. Quando
se vê uma casa com uma criança nela, parece mais feliz. Dá mais alegria e paz a
quem passa. O pai chega à casa, exausto, depois do trabalho, preocupado, amargo, e
seu filho corre até ele, abraça-o, porque as crianças não são duras como os adultos.
O pai já começa a sentir-se mais feliz desde que vê o filho. Fica realmente contente
consigo mesmo. Comove-se com o desejo que seu filho tem de amá -lo.”
Em 1968, uma equipe uruguaia publicou um pequeno livro, Se vive como se puede,
cujo conteúdo resultou dos debates gravados em torno de um certo número de
codificações propostas a um grupo de habitantes de um bairro proletário de
Montevidéu. A primeira edição desse livro, de três mil exemplares, se esgotou em 15
dias, o que ocorreu com a segunda.
O texto que se segue é um fragmento desse livro.
A COR DA ÁGUA
A água? a água? para que serve a água?
Sim, sim, é isto o que eu vejo. A água.
Ah! meu povoado distante!
O riacho em torno de que me criei, lavando, o riacho Fraile
Muerto, ai me criei eu. E a meninice assim, para um lado, para o outro.
Cor da água, boas recordações. Bonitas.
– Para que servia a água?
Para lavar.Você sabe, para nós que somos lavadeiras, e depois aí os animais iam
beber – ali estavam os campos – nós lavávamos também ai.
– E usavam a água também para beber?
Dario Salas, “Algumas experiências vividas na Supervisão da Educação Básica em Alfabetização
Funcional no Chile”, Relatório.
Dario Salas-se refere a um dos melhores programas de alfabetização de adultos organizados pela
Corporación de la Reforma Agrária, em colaboração com o Ministério de Educação e o Instituto de
Capacitación e Investigación en Reforma Agrária. Cinquenta camponeses recebiam alojamento e bolsa de
estudo por um mês. As discussôes em torno das palavras geradoras se centravam na análise da situação local,
regional e nacional.
– Íamos também ao riacho que não tínhamos água, tornávamos daí e me lembro,
uma vez, em 45, que veio uma praga de “martelos” – havia que tirá-los e eu digo
porque é verdade. Naqueles tempos havia sede, não se podia olhar o que se tornava.
Eu me lembro, eu era menina e separava os “martelos” assim, e as mãos, e outras eu
não tinha.
E a água quente, uma grande seca, o riacho quase sem água, água, suja, turva e
quente – de tudo um pouco, e tinha de tomar, porque se não morria de sede.
Todo o livro tem este estilo agradável, com grande força de expressão do mundo de
seus autores, “semeadores de palavras”, procurando emergir da cultura do silêncio.
Textos do povo, assim recolhidos, é-que devem constituir o material de leitura para
os alfabetizandos e não “Eva viu a uva”, “a asa é da ave” ou “se você trabalha com
martelo e prego tenha cuidado para não ferir o dedo”.
Naturalmente, porém, numa alfabetização do ponto de vista das classes dominantes,
o que se tem de oferecer aos alfabetizandos para ler é mesmo que “Eva viu a uva”...
Na nossa posição, o que defendemos e propomos é que os textos de leitura dos
alfabetizandos venham preponderantemente deles próprios e a eles voltem para a sua
análise.
Para isto, porém, é preciso que acreditemos neles e, em nossa prática com eles, nos
tornemos seus educandos também.
II PARTE: Ação cultural e conscientização
Existência em e com o mundo.
O ponto de partida para uma análise, tanto quanto possível sistemática, da
conscientização, deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos como
existentes no mundo e com o mundo. Na medida em que a condição básica para a
conscientização é que seu agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a
conscientização, como a educação, é um processo especifica e exclusivamente
humano. É como seres conscientes que mulheres e homens estão não apenas no
mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são
capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o
mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua
linguagem criadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que implica em
“tomar distância” do mundo, objetivando-o, que homens e mulheres se fazem seres
com o mundo. Sem esta objetivação, mediante a qual igualmente se objetivam,
estariam reduzidos a um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmos nem
do mundo.
Os animais, por sua vez, estão simplesmente no mundo, incapazes de objetivar-se e
ao mundo. Rigorosamente falando, vivem uma vida sem tempo, nela submersos, sem
a possibilidade de emergir dela, ajustados e aderidos a seu contorno.
Homens e mulheres, pelo contrário, podendo romper esta aderência e ir mais além do
mero estar no mundo, acrescentam à vida que têm a existência que criam. Existir é,
assim, um modo de vida que é próprio ao ser capaz de transformar, de produzir, de
decidir, de criar, de recriar, de comunicar-se.
Enquanto o ser que simplesmente vive não é capaz de refletir sobre si mesmo e
saber-se vivendo no mundo, o sujeito existente reflete sobre sua vida, no domínio
mesmo da existência e se pergunta em torno de suas relações com o mundo.
O domínio da existência é o domínio do trabalho, da cultura, da história, dos valores –
domínio em que os seres humanos experimentam a dialética entre determinação e
liberdade.
Se não tivessem sido capazes de romper com a aderência ao mundo, emergindo dele,
como consciência que se constituiu na “ad-miração” do mundo como seu objeto,
seriam seres meramente determinados e não seria possível então pensar em termos
de sua libertação.
Somente os seres que podem refletir sobre sua própria limitação são capazes de
libertar-se desde, porém, que sua reflexão não se perca numa vaguidade
descomprometida, mas se dê no exercício da ação transformadora da realidade
condicionante. Desta forma, consciencia de e ação sobre a realidade são inseparáveis
constituintes do ato transformador pelo qual homens e mulheres se fazem seres de
relação. A prática consciente dos seres humanos, envolvendo reflexão,
A este respeito ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade.
intencionalidade, temporalidade e transcendência, é diferente dos meros contactos
dos animais com o mundo.
Os contactos dos animais são acríticos. Não vão mais além da associação de imagens
sensoriais através da experiência. São singulares e não plurais. Os animais não
elaboram objetivos. Vivem ao nível da “imersão”, daí sua atemporalidade.
A possibilidade que têm os seres humanos de atuar sobre à realidade objetiva e de
saber que atuam, de que resulta que a tornam como objeto de sua curiosidade, a sua
comunicação mediatizada pela realidade, por meio de sua linguagem criadora, a
pluralidade de respostas a um desafio singular, testemunham a criticidade que há nas
relações entre eles e o mundo. Sua consciência, que não é a fazedora arbitrária da
objetividade, com a qual constitui uma unidade dialética, não é, também, por isso
mesmo, uma pura cópia, um simples reflexo daquela. Daí que esta nota de criticidade
não possa ser compreendida nem, de um lado, por quem absolutiza a objetividade,
nem, de outro, por quem absolutiza a consciência. No primeiro caso, a consciência
seria incapaz de voltar-se criticamente sobre a realidade concreta que a condic iona;
no segundo, na medida em que fosse a criadora da realidade, seria um a priori desta.
Em nenhuma destas hipóteses nos parece viável compreender a ação transformadora
dos seres humanos sobre o mundo. Do ponto de vista do objetivismo mecanicista,
porque, mera réplica da realidade, a consciência seria puro objeto da realidade que,
então, se transformaria a si mesma .
Do ponto de vista do subjetivismo, porque a transformação de uma realidade
simplesmente imaginada seria um absurdo. Assim, em ambos estes casos, não nos
parece possível a verdadeira praxis, que implica na unidade dialética entre
subjetividade e objetividade, prática e teoria.
O behaviorismo é incapaz também de compreender estas relações entre os seres
humanos e o mundo. Quer na forma chamada behaviorismo mecanicista, quer na
chamada behaviorismo lógico.
Na primeira, os seres humanos são negados enquanto vistos como máquinas; na
segunda, enquanto sua consciência é “mera abstração”.
Do ponto de vista de nenhuma dessas visões dos seres humanos e da realidade é
viável a compreensão da conscientização. Esta só é possível porque a consciência,
condicionada, é capaz de reconhecer-se como tal.
Esta dimensão critica da consciência explica as finalidades de que as ações
transformadoras dos seres humanos sobre o mundo estão impregnadas. Porque são
capazes de ter finalidades, são capazes de prever o resultado de sua ação, ainda
Transcendência, neste contexto, significa a capacidade da consciência humana de sobrepassar os limites da
configuração objetiva. Sem esta capacidade nos seria impossível a consciência do próprio limite. Estou
consciente, por exemplo, dos limites da mesa em que escrevo porque sou capaz de transcendê-los.
“La teoria materialista de que los hombres son producto de las circunstancias y de la educación, y de que,
portanto, los hombres modificados san producto de circunstancias distintas y de una educación distinta,
olvida que las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres y que el próprio educador
necessita ser educado”. Marx, III Tesis sobre Feuerbach, in Marx, K. e Engels, F., Carlos Marx – Federico
Engels, Obras Escolhidas, II Tomo, pág. 404, Editorial Progresso, Moscou, 1966.
Referimo-nos ao behaviorismo, tal como é estudado na obra de John Belloff, The existence of mind,
MacGibbon and Kee, Nova York, 1964.
antes de iniciada. São seres que projetam, como deixa claro Marx em O Capital:
“Aqui, diz ele, partimos del supuesto del trabajo plasmado ya bajo una forma en la
que pertenece exclusivamente al hombre. Una araña ejecuta operaciones que
semejan a las manipulaciones del tejedor, y la construcción de los panales de las
abejas podria avergonzar, por su perfección, a más de un maestro de obras. Pero,
hay algo en que el peor maestro de obras aventaja, desde luego, a la mejor abeja, y
es el hecho de que, antes de ejecutar la construcción, la proyecta en su cérebro. Al
final del proceso de trabajo brota un resultado que antes de comenzar el proceso
existia ya en la mente del obrero, un resultado que tenia ya existencia real”.
Ainda que as abelhas, como boas “especialistas”, possam identificar a flor de que
necessitam para fazer seu mel, não podem mudar de “especialização”. Não podem
também operar subprodutos. Sua ação sobre o mundo não está acompanhada pela
objetivação deste. Sua ação carece de reflexão critica. Enquanto os animais se
adaptam ao mundo para sobreviver, os seres humanos o transformam de acordo com
finalidades que se propõem, mesmo que sempre a partir de uma certa situação
histórica a que “chegam”, independentemente de sua consciência.
Adaptando-se ao mundo para sobreviver, sem fins a alcançar, sem opções, os animais
não “animalizam” o mundo, A “animalização” do mundo estaria associada
necessariamente à “animalização” e à “desanimalização” dos animais e isto
pressuporia neles a consciência de sua inconclusão, que os engajaria num movimento
de busca permanente. Em realidade, ao construir habilmente suas colméias e ao
fabricar seu me l, as abelhas continuam abelhas e, em seus contactos com o mundo,
não se fazem mais ou menos abelhas.
Para os seres humanos, como seres da praxis, transformar o mundo, processo em
que se transformam também, significa impregná-lo de sua presença criadora,
deixando nele as marcas de seu trabalho.
A criticidade e as finalidades que se acham nas relações entre os seres humanos e o
mundo implicam em que estas. relações se dão com um espaço que não é apenas
fisico, mas histórico e cultural. Para os seres humanos, o aqui e o ali envolvem
sempre um agora, um antes e um depois. Desta forma, as relaçbes entre os seres
humanos e o mundo são em si históricas, como históricos são os seres humanos, que
não apenas fazem a história em que se fazem mas, consequentemente, contam a
história deste mútuo fazer. A “hominização” – Chardin – no processo da evolução,
anuncia o ser autobiográfico.
Os outros animais, pelo contrário, se acham imersos num tempo que não lhes
pertence.
Há uma outra distinção fundamental entre as relações dos seres humanos com o
mundo e os contactos dos animais com ele: somente os seres humanos trabalham,
em sentido rigososo. Ao cavalo, por exemplo, lhe falta o que é próprio aos seres
humanos e a que Marx se refere no seu exemplo das abelhas: “Al final del proceso de
trabajo brota un resultado que antes de comenzar el proceso ya existia en la mente
del obrero, un resultado que tenia ya existencia real”. A ação que não tenha esta
dimensão não é trabalho. Nos campos como no circo, o trabalho dos cavalos reflete o
trabalho dos seres humanos. A ação é trabalho não por causa do maior ou menor
Karl Marx, O Capital. I volume, págs. 130-131, Fundo de Cultura, México, 1966.
“Os tigres não se destigricizam”, disse Ortega y Gasset em uma de suas obras.
esforço físico despendido nela pelo organisnio que. atua, mas por causa da
consciência que o sujeito tem de seu próprio esforço, da possibilidade de programar a
ação, de criar instrumentos com que melhor atue sobre o objeto, de ter finalidades,
de antecipar resultados. Mais ainda, para que a ação seja trabalho, é preciso que dela
resultem produtos significativos que, separando-se do produtor, se podem dar à sua
reflexão crítica ao mesmo tempo em que o condicionam.
Assim, na medida em que os seres humanos atuam sobre a realidade, transformandoa
com seu trabalho, que se realiza de acordo como esteja organizada a produção
nesta ou naquela sociedade, sua consciência é condicionada e expressa esse
condicionamento através de diferentes níveis.
NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA
Ao nos propormos uma análise dos níveis de consciência, gostaríamos de sublinhar,
desde o começo, que, se, de um lado, não estaremos absolutizando a consciência e,
de mo do geral, a supra-estrutura, de outro, não estaremos tampouco absolutizando a
infra-estrutura. Estaremos, pelo contrário, procurando compreender os diferentes
níveis de consciência em sua relação dialética com as condições materiais da
sociedade, por isso mesmo, nem como determinantes daquelas condições nem como
suas puras cópias. Temos insistido, neste como em outros . trabalhos, em que a
estrutura social, como um todo, é, em última análise, não a soma (nem também a
justaposição) da infra-estrutura com a supra-estrutura, mas a dialetização entre as
duas.
Dai o indiscutível papel que pode jogar a cultura no processo de libertação das classes
oprimidas.
Desta forma, ao procurar discernir, em termos relativos, as características
fundamentais da configuração histórico-cultural a que esses níveis correspondem,
esperamos não ser entendidos como se estivéssemos caindo numa das absolutizações
referidas acima.
Por outro lado, nossa intenção não é a de tentar um estudo das origens e da evolução
histórica da consciência, para o que, sobretudo, não nos achamos capacitados, mas
ensaiar uma análise introdutória aos níveis de consciência na realidade latinoamericana.
Isto não significa que uma tal análise, pelo menos em parte, não seja
aplicável a outras áreas do Terceiro Mundo bem como àquelas das sociedades
metropolitanas, que se identificam com o Terceiro Mundo, enquanto “áreas de
silêncio”.
Façamos, em primeiro lugar, algumas considerações em torno do que chamamos
cultura do silêncio, em que se encontram formas especiais de consciência dominada.
Apesar da evidência, talvez não seja demasiado afirmar que a constatação da cultura
do silêncio implica no reconhecimento da cultura dominante e que ambas, ao não se
gerarem a si próprias, se constituem nas estruturas de dominação. A cultura do
silêncio, tanto quanto dominadores e dominados, se encontra em relação dialética e
não de oposição simétrica com a cultura dominante.
Por outro lado, nem tudo o que compõe a cultura do silêncio é pura reprodução
ideológica da cultura dominante. Nela há também algo próprio aos oprimidos em que
se amuralham, como dissemos na primeira parte deste trabalho, para defender-se,
preservar-se, sobreviver. Daí a necessidade já salientada de a liderança
revolucionária conhecer não apenas as debilidades desta cultura mas também sua
potencialidade de rebelião.
Um dos aspectos a ser discutidos na análise da cultura do silêncio é o das relações
entre o chamado Primeiro Mundo e o Terceiro. Aquele, o mundo que “fala”, que
impõe, que invade; este, em momentos diferentes de suas relações dialéticas com
aquele, o mundo que escuta, que segue, que se rebela, que é assimilado ou
recuperado, que se rebela de novo, que se revoluciona, que se liberta, sem que esta
seqiiência seja algo preestabelecido.
Enquanto mundo que “fala”, o Primeiro Mundo tem, no seu seio, o seu Terceiro Mundo
– o mundo das classes e dos grupos sociais dominados, com sua cultura do silêncio
também – e o Terceiro, como totalidade dependente, tem, em sua intimidade, o seu
Primeiro Mundo – o mundo de suas classes dominantes, em relação de subordinação
ao Primeiro Mundo do Primeiro, isto é, às classes dominantes das sociedades
metropolitanas. Neste sentido é que há uma certa diferença entre as classes
dominantes do Primeiro Mundo e as classes dominantes do Terceiro, assim como
entre as classes e grupos dominados de ambos estes mundos.
As classes dominantes do Primeiro Mundo têm um poder hegemônico, que se exerce
não só sobre os seus grupos e classes dominadas mas sobre o conjunto das
sociedades dependentes. As classes dominantes destas sociedades, subordinadas aos
interesses daquelas, cujo estilo de vida tendem a reproduzir, exercem seu poder
sobre as classes dominadas nacionais.
As classes dominantes metropolitanas, com um alto poder manipulador, que a
modernização do sistema capitalista lhes possibilita, podem enfrentar suas crises mais
“suavemente” que as classes dominantes da sociedade dependente. A estrutura
dependente é demasiado débil para suportar a mais mínima presença das massas
populares em atitude contestadora. Daí a freqüente violência com que respondem aos
primeiros sintomas de reivindicação popular.
Por seu turno, as classes e grupos dominados do Primeiro Mundo participam de uma
totalidade dominante, enquanto as classes e grupos dominados do Terceiro fazem
parte de uma totalidade dependente. Daí que um dos mitos da cultura dominante do
Primeiro Mundo – para falar só neste – o mito de sua “superioridade natural”, penetre
a cultura do silêncio deste mundo, o que explica o sentimento de superioridade que
muitos dominados do Primeiro Mundo têm em face dos dominados do Terceiro
Mundo.
O outro lado do mesmo fenômeno é a caracterização que dominados do Terceiro
Mundo fazem de dominados do Primeiro, como dominadores.
Só na medida em que estes e aqueles se assumam como a grande maioria de
dominados e não mais como minorias divididas entre si e reconheçam a identidade de
Neste sentido, pode-se falar também de uma tentação que revolucionários metropolitanos devem evitar: a
de pretender possuir a verdade revolucionária do Terceiro Mundo. Se não superam esta tentação messiânica,
terminam por cair numa contradição com sua opção: a do “colonialismo revolucionário”
seus interesses, na diversidade de suas realidades, é que se percebem como
companheiros de uma mesma jornada.
Finalmente, a sociedade dependente é, por definição, uma sociedade semi -silenciosa.
Suas classes dominantes não “falam” – refletem a voz imperial.
Somente quando as classes e grupos dominados, o Terceiro Mundo do Terceiro,
transformam revolucionariamente suas estruturas é que se faz possível realmente à
sociedade dependente dizer sua palavra. É através desta transformação radical que se
pode superar a cultura do silêncio.
Por outro lado, se um grupo alcança o poder por meio de um golpe de estado e
começa a tomar medidas nacionalistas, no campo da economia e da cultura, como no
caso do Peru, no ano passado, 1968, sua política cria uma nova contradição com uma
das seguintes conseqüências. Em primeiro lugar, o novo regime pode superar suas
próprias intenções e ver-se obrigado a romper com a cultura do silêncio ou, ao
contrário, temendo a presença das massas populares, pode retroceder e reimpor o
silêncio a elas. Terceiro, o governo pode favorecer um novo tipo de populismo. Neste
caso, estimuladas pelas medidas nacionalistas, as massas submersas terão a ilusão
detestar participando das transformações de sua sociedade, sendo, na verdade,
astutamente manipuladas. Mesmo, porém, que seja este o caso, a política populista
provocará certas “aberturas” nas áreas mais fechadas da sociedade peruana e,
através destas, as massas populares começarão a emergir de seu silêncio, fazendo
exigências. Na medida em que estas sejam satisfeitas, embora parcialmente, a
tendência das massas populares será aumentar a freqüência de suas demandas e, ao
mesmo tempo, melhorar a qualidade das mesmas. Deste modo, a política populista
terminará por criar sérias contradições ao grupo militar no poder, que será obrigado a
romper definitivamente com a cultura do silêncio ou a restaurá-la. Por esta razão, não
nos parece possível, no momento atual, que algum governo latino-americano possa
manter uma relativa independência em face do poder imperial, se preserva
internamente a cultura do silêncio.
Em 1961, Jânio Quadros veio ao governo, no Brasil, através de uma das maiores
vitórias eleitorais na história do pais. Quadros tentou uma política contraditória – a de
uma relativa independência em face do império com forte controle interno.
Depois de sete meses à frente do governo, inesperadamente, anunciou à nação que
se via forçado a renunciar à Presidência do país sob a pressão das “mesmas forças
ocultas” que haviam levado o presidente Vargas ao suicídio. Em seguida, fez sua
melancólica partida para Londres.
O golpe militar brasileiro que, pitorescamente, se vem chamando a si mesmo de
revolução, e que derrubou o governo Goulart em 1964, tem seguido uma política
coerente: submissão à metrópole, associada a uma violenta repressão e imposição de
silêncio às massas populares. Uma política de submissão tão incondicional à
metrópole seria incompatível com uma, pelo menos débil, abertura política de que
decorresse uma presença mais atuante das massas populares. Inviável seria também,
repitamos, uma política de independência com relação ao imperialismo, sem a ruptura
da cultura do silêncio.
Uma das formas de consciência dominada, nestas sociedades dependentes, se
caracteriza por sua quase “aderência” à realidade objetiva ou sua quase “imersão”na
realidade. A este nível, como salientamos em Pedagogia do Oprimido, a consciência
domiaada não toma suficiente distância da realidade a fim de objetivá-la e conhecê-la
criticamente.
Chamamos a essa forma de consciência de “semi-intransitiva”. Em sua quase imersão
na realidade, esta modalidade de consciência não consegue captar muitos dos
desafios do contexto ou os percebe destorcidamente.Sua semi -intransitividade
envolve uma certa obliteração que lhe é imposta pelas condições objetivas. Daí que
no seu “fundo de visão” os dados que mais facilmente se destaquem sejam os que
dizem respeito aos problemas vitais, cuja razão de ser, de modo geral, é sempre
encontrada fora da realidade concreta. É que, a este nível de quase imersão, não se
verifica facilmente o que chamamos de “percepção estrutural” dos fatos, que implica
na compreensão verdadeira da razão de ser dos mesmos. Desta forma, a explicação
para os problemas se acha sempre fora da realidade, ora nos desígnios divinos, ora
no destino, ou também na “inferioridade natural” de homens e mulheres cuja
consciência se encontra a este nível. A semi -intransitividade está necessariamente
associada ao fatalismo, ainda que este não seja uma exclusividade da semi -
intransitividade. De qualquer maneira, se a explicação das situações problemáticas se
encontra em algum poder superior ou na “incapacidade natural” dos seres humanos,
é óbvio, então, que a ação destes, como resposta àquelas situações problemáticas,
não se oriente no sentido da transformação da realidade que as origina, mas, ao
contrário, ao poder superior responsável pela existência das situações bem como por
sua “inferioridade natural”. Sua ação tem, pois, um caráter mágico-defensivo ou
mágico-terapêutico. Assim é que, na colheita como na semeadura, os camponeses
latino-americanos e do Terceiro Mundo em geral realizam ritos mágicos, quase
sempre de natureza sincrético-religiosa.
Envolvendo mais uma vez as relações dialéticas entre subjetividade e objetividade, a
transformação desses ritos em pura tradição não se faz, diga-se de passagem,
mecanicamente.
Nada do que estamos dizendo sobre a semi-intransitividade significa, porém, que
homens e mulheres, cuia consciência se encontra a este nível, sejam incapazes de
superar sua compreensão mágica dos fatos; sejam incapazes de refazer a leitura de
sua realidade, percebendo, afinal, que a sua indigência tem outras razões que não as
até então admitidas. Pelo contrário, a experiência tem mostrado que mais
rapidamente do que se pensa, esta releitura se faz possível, mesmo que, entre o
momento da releitura e do engajamento numa nova forma de ação coerente com ela,
haja muito o que fazer.
Às vezes, o desvelamento de pelo menos parte das razões dos fatos que a releitura
da realidade oferece leva os indivíduos que a fazem a um estado de inquietude que
assusta aos educadores que a eles foram movidos apenas por sentimentos
humanitários, sem uma opção política clara.
Em situações tais, estes educadores percebem como, em pouco tempo, foram
superados por aqueles de quem pretendiam ser os educadores. Percebem que, não
obstante saberem ler e escrever, eram “politicamente analfabetos”.
Esta forma de consciência se encontra, em termos preponderantes, nas áreas rurais da América Latina, onde
os latifúndios são regra geral.
Alguns deles, amedrontados, renunciam ao trabalho iniciado; outros, aceitando o
desafio que aquela releitura lhes coloca, refazem igualmente sua leitura e,
abandonando o espontaneísmo humanitarista, se tornam realmente militantes.
“Alfabetizam-se” politicamente, com os analfabetos a quem pretendiam salvar...
Voltemos, porém, a algumas considerações de natureza histórica. Sob o impacto das
transformações infra-estruturais que produziram as primeiras “rachaduras” nestas
sociedades, umas, mais do que as outras, entraram na etapa atual de transição
histórico-cultural. No caso particular do Brasil, este processo começa com a abolição
da escravatura nos fins do século passado, acelera-se durante a primeira guerra
mundial, intensifica-se com a crise de 1929, enfatiza-se com a segunda guerra e
prossegue até 1964, quando o golpe militar condena violentamente a nação ao
silêncio.
O importante é que, uma vez iniciado o processo de “rachadura”, com que a
sociedade brasileira entra em transição, os primeiros movimentos de emersão das até
então preponderantemente submersas e silenciosas massas começam a manifestarse.
Não significando a superação da cultura do silêncio, estes primeiros movimentos de
emergência são, contudo, um momento novo desta cultura, de caráter ainda
estritamente urbano. Se, na fase anterior, o silêncio coincidia com a percepção
fatalista que as massas populares tinham da realidade e em que as classes
dominantes eram raramente questionadas, agora, nos centros urbanos, o silêncio
começa a ser percebid o como o resultado de uma realidade material que pode ser
transformada e não mais como algo inalterável, uma espécie de destino ou sina. Por
isso mesmo, esses movimentos de emersão levam as classes dominantes,
experimentando-se não apenas enquanto grandes proprietários de terras mas
também enquanto empresários nos centros urbanos, a buscar novas formas de
silenciar as massas populares em emersão.
Esta transição histórica corresponde a uma nova forma de consciência popular – a
“transitivo-ingênua”. Se, ao nível da “semi-intransitividade”, são os problemas vitais
os que mais facilmente se destacam, ao nível da transitividade ingênua a capacidade
de captação se amplia e, não apenas o que antes não era percebido passa a ser, mas
também muito do que era entendida de uma certa forma o é agora de maneira
diferente.
Não há, porém, fronteiras rígidas entre uma modalidade e outra de consciência.
Assim, em muitos casos, a consciência semi-intransitiva continua presente, em certos
aspectos, na transitivo-ingênua.
Na América Latina, por exemplo, quase toda a população camponesa se encontra
ainda na etapa da quase imersão. A consciência camponesa, mesmo nas áreas em
abertura, conserva um grande numero de mitos de sua primeira etapa, apesar de
marchar no sentido da transitividade.
A abolição da escravatura no Brasil traz consigo a inversão de capital em indústrias mesmo incipientes
ainda e estimula as primeiras ondas de imigração alemã, italiana e japonesa nos estados do centro-sul e do
sul do país.
Todo estudo sério que se faça para a compreensão, neste período, de como se constituiu a classe operária
no Brasil, nos parece de importância capital.
Desta maneira, a consciência transitiva emerge como consciência ingênua, tão
dominada quanto a anterior, mas indiscutivelmente mais alerta com relação à razão
de ser de sua própria ambigüidade.
Por outro lado, a emersão da consciência popular, mesmo ainda ingenuamente
transitiva, provoca o desenvolvimento da consciência das classes dominantes. É que a
transitividade ingênua anuncia, nas massas populares emersas, a constituição da
consciência de classe dominada, com que se assumem como “classe para si”. Desta
forma, assim como há um momento de surpresa entre as massas populares quando
começam a ver o que antes não viam, há uma correspondente surpresa entre as
classes dominantes quando percebem que estão sendo desveladas pelas massas. Esta
dupla revelação provoca ansiedades numas e noutras.
As massas populares se fazem ansiosas por liberdade, por superar o silêncio em que
sempre estiveram. As classes dominantes, por manter o “status quo”, para o que se
inclinam, em função do grau de pressão daquelas, a reformas estruturais que não
afetem o sistema em sua essência.
No processo de transição, o caráter preponderantemente estático da “sociedade
fechada” vai, gradativamente, cedendo seu lugar a um maior dinamismo em todas as
dimensões da vida social. As contradições vêm à superfície e os conflitos em que a
consciência popular se educa e se faz mais exigente se multiplicam, provocando
maiores apreensões nas classes dominantes.
Na medida em que a transição histórica se aprofunda e as contradições típicas de
uma sociedade dependente se vão iluminando, grupos de intelectuais pequenoburgueses
começam a assumir novas formas de compromisso, rechaçando esquemas
importados e soluções pré-fabricadas.
Alguns artistas se inspiram não mais na vida fácil da burguesia, mas na vida difícil e
dura do povo; na poesia, já não se cantam apenas os amores perdidos nem se fala de
camponeses e operários urbanos como abstrações, mas como homens e mulheres
concretos, em uma realidade concreta.
No caso do Brasil, estas mudanças qualitativas marcam todos os níveis da atividade
criadora.
Ao intensificar-se a fase de transição, estes grupos tentam uma volta sobre a
realidade nacional que passa a ser estudada em termos distintos.
Por outro lado a fase de transição gera também um novo estilo político, o populismo,
já que os antigos modelos, os da “sociedade fechada”, não são adequados à nova
etapa, a da emersão popular.
Na medida, porém, em que esta emersão é um fenômeno urbano, uma vez que as
grandes áreas de latifúndio continuam intocadas, o populismo, mesmo com
repercussões naquelas áreas, é igualmente uma expressão urbana. Responde à
presença das massas populares, que começam a emergir de seu silêncio de maneira
ingênua, mas sua resposta é manipuladora. Se, porém, a manipulação populista
reforça, de um lado, a ingenuidade das massas emergentes, de outro, enquanto lhes
estimula os protestos e as exigências, igualmente estimula o processo de
desvelamento da realidade. Eis aí um dos aspectos do caráter ambíguo do populismo.
Manipulador mas, ao mesmo tempo, um fator de mobilização democrática.
Assim, o novo estilo de ação política, nas sociedades em transição, não se esgota no
papel manipulador de seus lideres, que fazem a mediação entre as massas populares
e a oligarquia. É que não é o populismo o que provoca a emersão das massas
populares, mas é o aparecimento destas, em dadas condições históricas, que o faz
possível, como um novo estilo político.
Desta maneira, independentemente da intenção de seus líderes, o populismo termina
por reforçar a participação política das massas populares em cujo processo se fazem
conscientes, cedo ou tarde, de seu estado de exploradas.
As sociedades que experimentam a agudização deste momento histórico vivem um
clima de pré-revolução, de que o contrário antagônico é o golpe de estado. E a maior
ou menor violência deste depende, não do caráter mais ou menos humanitário destas
ou daquelas forças armadas, mas do nível em que se encontre a luta de classes na
sociedade que o sofre.
Por outro lado, quanto mais sólidos sejam os fundamentos ideológicos do golpe, tanto
menos fácil será o retorno da sociedade ao mesmo estilo político em que se geraram
as condições para a sua efetivação.
Desta forma, um golpe de estado muda, qualitativamente, a transição histórica da
sociedade e estabelece o começo de nova transição.
Na etapa anterior, o golpe era a possibilidade antagônica da revolução. Na nova
transição por ele criada, o golpe define e confirma um poder arbitrário e antipopular e
sua tendência é tornar-se cada vez mais rígido, a não ser que seja possível acelerar a
modernização capitalista de que decorra, pelo menos, a diminuição das tensões
sociais, através de uma política de melhor distribuição das rendas. O problema que se
põe é o de se realmente é viável um tal sonho – o de intensificar a modernização
capitalista, “financiando-se”, ao mesmo tempo, a economia imperial...
No Brasil, na transição marcada pelo golpe militar, se efetiva uma ideologia do
“desenvolvimento”, na qual “a idéia da grande empresa internacional substitui a idéia
do monopólio estatal como base para o desenvolvimento”.
E uma das exigências fundamentais de tal ideologia é, necessariamente, o silêncio dos
setores populares e sua exclusão das esferas de decisão. Parece-nos assim uma
ingenuidade, em que as forças populares devem evitar cair, a de pensar na
possibilidade de “aberturas” políticas, de que resultasse o restabelecimento do ritmo
anterior.
As “aberturas” que a transição inaugurada pelo golpe militar de 1964 oferece têm sua
semântica própria. Não significam uma volta ao que foi, mas idas e vindas no jogo
das acomodações do sistema mesmo.
Francisco WefTort, entre outros, tem insistido em ressaltar a ambigüidade como uma das características
principais do populismo.
Fernando Henrique Cardoso, “Hegemonia Burguesa e Independência Econômica – Raízes estruturais da
crise política brasileira”, Revista Civilização Brasileira nº 17, janeiro de 1968.
O que se impõe é a compreensão dos desafios que a nova transição coloca e que
demandam formas distintas de ação. De ação em silencio, que requer difícil
aprendizado.
AÇÃO
CULTURAL E
REVOLUÇÃO CULTURAL
Seria desnecessário dizer aos movimentos revolucionários que eles se encontram em
relação antagônica com as classes dominantes. Não será demasiado enfatizar, porém,
que este antagonismo, que envolve objetivos e interesses opostos, deve expressar-se
em formas de ação igualmente distintas. Na verdade, deve haver uma diferença entre
a prática daquelas classes e a dos movimentos revolucionários, que os perfile
claramente. Esta diferença não é arbitrária, nem puramente formal. Ela tem uma
fonte radical: a natureza utópica no sentido já referido neste texto, dos movimentos
revolucionários, de que as classes dominantes carecem em ternos definitivos.
Na medida, porém, em que a verdadeira utopia implica na dialetização da denúncia e
do anúncio, a liderança revolucionária não pode:
a) denunciar a realidade sem conhecê-la.
b) anunciar a nova realidade sem ter um pré -projeto que, emergindo na denúncia,
somente se viabiliza na práxis.
c) conhecer a realidade distante dos fatos concretos, fontes de seu conhecimento.
d) denunciar e anunciar sozinha.
e) não confiar nas massas populares, renunciando à sua comunhão com elas.
Em caso contrário, a liderança revolucionária corre o risco de contradizer-se, o que
ocorre quando, por exemplo, vitima de uma visão fatalista da história, tenta
domesticar as massas populares a um futuro que “conhece” a priori ou quando se
considera possuidora da verdade revolucionária a que as massas populares não
podem ter acesso, devendo, por isso mesmo, ser “salvas” por ela.
Neste caso, burocratizada, a liderança revolucionária deixa de ser utopica.
As classes dominantes é que, por sua natureza, só podem, como dissemos antes,
denunciar a quem as denuncia e anunciar os seus próprios mitos.
Um projeto verdadeiramente revolucionário, por outro lado, se autentica, na medida
em que vai cumprindo sua vocação natural: a de selar a unidade, a comunhão, entre
a liderança revolucionária e as massas populares, na prática da transformação da
sociedade de classes e na da construção da sociedade socialista. Quanto mais esta
unidade se concretiza, tanto menos perigo tem a liderança revolucionária de
burocratizar-se.
Correndo o risco de parecer pensar simetricamente, diremos que, biofilica, a utopia
revolucionária tende ao dinâmico e não ao estático; ao vivo e não ao morto; ao futuro
como desafio à criatividade humana e não ao futuro como repetição do presente; ao
amor como libertação e não como posse patológica; à emoção da vida e não às frias
abstrações; à comunhão e não ao gregarismo; ao diálogo e não ao mutismo; à
práxise não à ordem e à lei, como mitos; aos seres humanos que se organizam
criticamente para a ação e não à organização deles para a passividade; à linguagem
A propósito de biofilia e necrofilia, ver Erich Fromm, The heart of man, Routledge and Kegan Paul,
Londres.
criadora e comunicativa e não aos “slogans” domesticadores; aos valores que se
encarnam e não aos mitos que se impõem.
Necrofilica, a rigidez reacionária prefere o morto ao vivo; o estático ao dinâmico; o
futuro como repetição do presente ao futuro como aventura criadora; as formas
patológicas de amor ao amor verdadeiro; a esquematização fria à emoção da vida; o
gregarismo à verdadeira comunhão; a organização dos seres humanos como objetos
e não a estes se organizando como sujeitos; os mitos que são impostos aos valores
encarnados; as prescrições à comunicação; os “slogans” aos desafios.
É necessário que os revolucionários dêem testemunho, mais e mais, da radical
diferença que os separa das forças reacionárias. Não é suficiente condenar a violência
da direita, sua postura aristocrática, seus mitos. Os revolucionários precisam provar o
seu respeito às massas populares dominadas, confiar nelas, não como pura tática,
mas como uma exigência necessária para serem revolucionários. Se esta confiança
nas massas populares, que não podem ser vistas como algo que está aí para ser
libertado, é fundamental em todos os momentos, mais ainda o é na transição criada
pelo golpe.
Ao institucionalizar a violência, de que decorre uma insegurança generalizada, o golpe
de estado reforça o velho clima da cultura do silêncio. E é neste clima que a liderança
revolucionária, na sua aprendizagem permanente, tem de encontrar novos caminhos
de testemunhar sua presença – a presença de quem nelas confia e de quem com elas
está disposto a aprender. Assim, um projeto de ação revolucionária, o mais mínimo
que seja, se distingue do quefazer reacionário, não só do ponto de vista de seus
objetivos, mas também quanto a seus métodos e a seu conteúdo. Na medida em que,
enquanto revolucionário, o projeto busca a afirmação das classes dominadas através
de sua libertação, qualquer concessão impensada aos métodos dos opressores é
sempre uma ameaça ao projeto revolucionário. Sem preacupaçòes puristas, os
revolucionários devem, contudo, exigir de si mesmos uma radical coerência. A
coerência entre seu discurso e sua prática para que não sejam uns ao falar, outros ao
agir. Como homens e mulheres, podem equivocar-se e mesmo errar; o que não
podem é, num momento, verbalizar a opção revolucionária e noutro, ter uma prática
pequeno-burguesa.
Por outro lado, devem adequar sua ação às condições histórias, realizando o possível
de hoje para que possam viabilizar amanhã o impossível de hoje. Uma de suas tarefas
é descobrir os procedimentos mais eficientes, em cada circunstância, a fim de ajudar
as classes dominadas a superar os níveis de consciência semi -intransitiva e transitivoingênua
pelo da consciência crítica, o que significa que se assumam como “classe
para si”. Esta preocupação não pode ser estranha a nenhum projeto revolucionário
que é, também, ação cultural preparando-se para ser revolução cultural.
A revolução é um prncesso crítico, que demanda aquela constante comunhão entre a
liderança e as massas populares.
Toda a prática revolucionária de Guevara foi um exemplo, sempre, de como ele
buscava essa comunhão.
Quanto mais estudamos sua obra tanto mais nos convencemos de sua firme
convicção em torno desta necessidade. É por isso mesmo que ele não hesita em
reconhecer a capacidade de amar como uma indispensável qualidade revolucionária.
Ainda que se refira, constantemente, em seu diário da Bolívia, à falta de interesse dos
camponeses pelo movimento guerrilheiro, em nenhum momento demonstra desamor
por eles. Nunca perdeu a esperança de contar com sua participação.
Sua capacidade de dialogar, de comunicar-se, de submeter sua prática diária a uma
constante reflexão critica levaram-no a ter, no seu acampamento guerrilheiro, um
“contexto teórico”, no qual analisava, com seus companheiros, os acontecimentos que
estavam vivendo e planejava, com eles, a ação de todos.
Guevara não fez dicotomias entre métodos, conteúdos e objetivos de seus projetos.
Irmanado com seus companheiros no mesmo risco de vida, tinha, como eles, na
guerrilha, uma introdução à liberdade, um chamamento à vida para todns aqueles e
aquelas que estão mortos em vida.
Como Camilo Torres, ele também não se fez guerrilheiro por desesperação, mas por
amor verdadeiro. Ambos procuravam realizar o sonho do novo homem e da nova
mulher, nascendo na e da prática da libertação. Neste sentido, Guevara encarnou a
autêntica utopia revolucionária. Foi um dos maiores profetas dos silenciosos do
Terceiro Mundo. Conversando com muitos deles, falou em nome de todos.
Ao citar Guevara e seu testemunho como guerrilheiro, não queremos dizer que todos
os revolucionários estejam obrigados, em diferentes circunstâncias históricas, a fazer
o mesmo que ele fez. O indispensável, porém, é que busquem a comunhão com as
massas popvlares.
Tal comunhão é uma característica fundamental da ação cultural para a libertação. É
na prática desta comunhão, que se dá na prática revolucionária, que a
conscientização alcança o seu mais alto nível. E é nela que os oprimidos superam o
que Goldman chama de “consciência real” pelo “máximo de consciência possível”.
Implicando na inserção crítica na realidade que se desmistifica, a conscientização é
algo mais que a “prise de conscience”.
Por esta razão, a conscientização é um projeto irrealizável pela direita, que, por
natureza, não pode ser utópica. Não há conscientização popular sem uma radical
denúncia das estruturas de domi nação e sem o anuncio de uma nova realidade a ser
criada em função dos interesses das classes sociais hoje dominadas.
As classes dominantes não podem desvelar-se a si mesmas nem tampouco
proporcionar os meios às classes dominadas para que estas o façam. Assim, as duas
formas de ação cultural, a que corresponde aos interesses das classes dominadas e a
que satisfaz aos das classes dominantes, são formas de ação antagônicas.
Enquanto a ação cultural para a libertação se caracteriza pelo diálogo, “somo selo” do
ato de conhecimento, a ação cultural para a domesticação procura embotar as
consciências. A primeira problematiza; a segunda “sloganiza”. Desta forma, o
fundamental na primeira modalidade de ação cultural, no próprio processo de
organização das classes dominadas, é possibilitar a estas a compreensão crítica da
verdade de sua realidade.
Coerente com este princípio, não se pode aceitar, em tal forma de ação, a
transferência de conhecimento, que implica sempre na existência de um pólo que
sabe e na de outro que nada sabe.
Lucien Goldman, The Human Science and Philosophy, Jonathan Cape Ltda, Londres, 1969.
Do ponto de vista das classes dominantes, a ação cultural deve estar a serviço da
preservação de seu poder. Daí a necessidade da mitificação da realidade, para o que
aquelas classes contam com a ciência e a tecnologia sob seu comando.
Para os que se engajam na ação cultural para a libertação, a ciência é igualmente
indispensável ao esforço, porém, de denúncia dos mitos veiculados pelas classes
dominantes.
O caráter utópico da ação cultural para a libertação a distingue da outra forma de
ação. Baseada em mitos, a ação cultural para a dominação não pode problematizar a
realidade, propondo o seu desvelamento, pois que assim contradiria os interesses
dominantes. Na ação cultural problematizante, pelo contrário, a realidade anunciada é
o projeto histórico a ser concretizado pelas classes dominadas, em cujo processo a
consciência semi-intransitiva como a ingênua são sobrepassadas pela consciência
critica – “máximo de consciência possível”.
O exercício desta criticidade não se esgota, por outro lado, quando o anúncio se faz
concretude. Ele se torna, ao contrário, absolutamente indispensável à difícil tarefa de
construção da sociedade socialista.
Assim, a ação cultural para a libertação, que caracterizou o movimento que lutou pela
realização do anúncio, deve transformar-se em revolução cultural.
Antes de fazer umas poucas considerações em torno dos distintos mas interrelacionados
momentos da ação cultural e da revolução cultural, digamos algo mais
sobre os níveis de consciência.
Uma relação estreita foi estabelecida entre a ação cultural para a libertação, a
conscientização como uma característica desta forma de ação e a superação da semi -
intransitividade e da ingenuidade pela consciência critica das classes dominadas – sua
consciência de classe.
A consciência critica não se constitui através de um trabalho intelectualista mas na
práxis – ação e reflexão.
Numa perspectiva revolucionária – a das classes dominadas – esta ação consciente
não lhes pode ser negada, nem no momento da denúncia-anúncio, nem quando o
anúncio se concretiza. Neste, o exercício do pensar critico, sobretudo com a
superação da dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, vai ajudar a
extrojeção dos mitos que se conservam, apesar da nova realidade em nascimento.
Finalmente, neste período, o pensar crítico é fundamental também como um modo de
enfrentar a potencialidade mitifxante da tecnologia, que se faz necessária à recriação
da sociedade.
Há duas direções possíveis que se oferecem à consciência ingênua. A primeira é a de
alcançar o nível de criticidade, ou o que Goldman chama de “máximo de consciência
possível”, a segunda é a sua distorção numa forma “irracional” ou “fanática”. O
caráter mágico da consciência semi-intransitiva é, na consciência “irracional”,
substituído pelo “mítico”. A “massificação” coincide com este nível de consciência.
Diga-se de passagem, porém, que a “sociedade massificada” não deve ser identificada
com a sociedade em que as massas populares emergem no processo histórico, como
urna visão aristocrática do fenômeno pode sugerir. De fato, a emergência das massas
populares, com suas exigências, é um fenômeno que corresponde à “rachadura” da
sociedade fechada. A “sociedade massificada” aparece muito mais tarde: surge nas
sociedades altamente tecnologizadas, absorvidas pelo mito do consumo. Nestas
sociedades, a especialização necessária se transforma em “especialismo” alienante e
a razão se distorce em “irracionalismo”.
Ao contrário da especialização, contra a qual não poderíamos estar, os especialismos
estreitam a área do conhecimento a tal ponto que os chamados “especialistas” se
tornam geralmente incapazes de pensar mais além de seu delimitado campo. Pior,
porque perdem a visão da totalidade de que a especialidade é apenas uma parte, não
podem pensar corretamente nem mesmo no seu campo.
Da mesma maneira, a racionalidade, fundamental à ciência e à tecnologia, cede seu
lugar ao “irracionalismo” mitificante, sob os efeitos extraordinários da própria
tecnologia. As tentativas de explicar os seres humanos como um tipo superior de
robot devem originar-se em tal “irracionalismo”.
Nas sociedades massificadas os indivíduos “pensam” e agem de acordo com as
prescrições que recebem diariamente dos chamados meios de comunicação. Nestas
sociedades, em que tudo ou quase tudo é pré-fabricado e o comportamento é quase
automatizado, os indivíduos “se perdem” porque não têm de “arriscar-se”. Não têm
de pensar em torno das coisas mais insignificantes; há sempre um manual que diz o
que deve ser feito na situação “A” ou na situação “B”. Raramente se faz necessário
parar na esquina de uma rua para pensar em que direção seguir. Há sempre uma
flecha que desproblematiza a situação.
Mesmo que as indicações nas ruas não sejam um mal em si e que sejam necessárias
em cidades cosmopolitas, elas são, porém, uma amostra, entre milhares de outros
sinais direcionais que, introjetados, obstaculizam a capacidade de pensar
criticamente.
A tecnologia deixa de ser percebida como uma das grandes expressões da criatividade
humana e passa a ser tomada como uma espécie de nova divindade a que se cultua.
A eficiência deixa de ser identificada com a capacidade que têm os seres humanos de
pensar, de imaginar, de arriscar-se na atividade criadora para reduzir-se ao mero
cumprimento, preciso e pontual, das ordens que vêm de cima.
Esclareça-se, porém, que o desenvolvimento tecnológico deve ser uma das
preocupações do projeto revolucionário. Seria simplismo atribuir a responsabilidade
por esses desvios à tecnologia em si mesma. Seria uma outra espécie de
irracionalismo, o de conceber a tecnologia como uma entidade demoníaca, acima dos
seres humanos. Vista criticamente, a tecnologia não é senão a expressão natural do
processo criador em que os seres humanos se engajam no momento em que forjam o
seu primeiro instrumento com que melhor transformam o mundo.
Em uma conversa recente com o autor, o psicanalista Michael Maccoby, assistente do dr. Erich Fromm,
disse que resultados de suas investigações sugerem uma relação entre a mitificação da tecnologia e as
atitudes necrofílicas.
“Professionals who seek self-realization through creative and autonomous behavior without regard to the
defined goals, needs and channels of their respective departments have no more place in a large corporation
or government agency than squeamish soldiers in the Army... The social organization of the new technology
by systematically denyng to the general population experiences which are analogous to those of its higher
management, contributes very heavily to the growth of social irrationality in our society” John MacDermott,
“Technology: The opiate.of intellectuals”, New York Review of Books, Vol. 13, nº 2, julho 1969.
Considerando que a tecnologia não é apenas necessária mas parte do natural
desenvolvimento dos seres humanos, o problema que se coloca à revolução é o de
como evitar os desvios míticos a que nos referimos.
Este não é um problema tecnológico, mas político, e se acha visceralmente ligado à
concepção mesma que se tenha da produção. Se esta se orienta no sentido do
“consumismo”, dificilmente se evitará a mitificação da tecnologia, e a sociedade
socialista repete, em parte, a capitalista.
Finalmente, clarifiquemos as razões por que temos falado da ação cultural e da
revolução cultural como momentos distintos do processo revolucionário.
Em primeiro lugar, a ação cultural para a libertação se realiza em oposição às classes
dominantes, enquanto a revolução cultural se faz com a revolução já no poder.
Os limites da ação cultural para a libertação se encontram na realidade opressora
mesma e no silêncio imposto às classes dominadas pela classes dominantes. São
esses limites os que determinam as táticas a serem usadas, que são necessariamente
diferentes das empregadas na revolução cultural.
Enquanto a ação cultural para a libertação enfrenta o silêncio como dado concreto e
como realidade introjetada, a revolução cultural o confronta apenas como introjeção.
Ambas são um esforço através do qual se nega, culturalmente, a cultura dominante,
mas a revolução cultural já conta com as novas bases materiais que viabilizam aquela
negação. A nova cultura que nasce no seio da velha que é negada não está isenta,
porém, de uma permanente análise critica. É que a revolução cultural não é
imobilista.
A ação cultural para a libertação e a revolução cultural implicam na comunhão entre
os líderes e as massas populares, como sujeitos da transformação da realidade. Na
revolução cultural, porém, esta comunhão é tão íntima que líderes e povo se tornam
um só corpo e permanente processo de auto-avaliação.
Em dois pontos, porém, não há diferença entre a ação cultural para a libertação e a
revolução. cultural. Amb as têm na “dialética da sobredeterminação” a sua explicação
necessária e são ambas conscientizadoras. Ser consciente, numa como na outra, não
é um “slogan” nem expressão de idealismo, mas a forma radical de ser dos seres
humanos.
Se estes fossem corpos inconscientes, incapazes de perceber, de conhecer que
conhecem, de recriar; se fossem inconscientes de si mesmos e do mundo, a idéia de
conscientização não teria sentido, mas, neste caso, tampouco teria sentido a idéia de
revolução. A realidade material que condiciona a consciência não é a fazedora de si
mesma, “las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres”, disse
Marx.
Desde, porém, que a consciência é condicionada pela realidade, a conscientização é
um esforço através do qual, ao analisar a prática que realizamos, percebemos em
termos críticos o próprio condicionamento a que estamos submetidos.
Neste sentido, é um processo tão permanente quanto a revolução, que só para
mentalidades mecanicistas cessa com a chegada ao poder. E é precisamente neste
momento que muitos de seus mais sérios problemas começam e que algumas
ameaças a espreitam, entre elas, a da bucrocracia esclerosante.
O processo da alfabetização política
– uma introdução
Genebra – 1970
Quando aceitei escrever este artigo para LUTHERISCHE MONATSHEFTE tomei seu
tema como um desafio.
O próprio fato de tê-la reconhecido como tal me obrigou a assumir em face dele uma
atitude crítica e não ingênua.
Esta atitude critica, em si própria, implica na penetração na “intimidade” mesma do
tema, no sentido de desvelá-la mais e mais. Assim, o artigo, ao ser a resposta que
procuro dar ao desafio, se torna outro desafio a seus possíveis leitores. É que minha
atitude crítica em face do tema me engaja num ato de conhecimento e este exige,
não só o objeto cognoscível, mas também outro sujeito cognoscente, como eu.
Conhecer, que é sempre um processo, supõe uma situação dialógica. Não há
estritamente falando um “eu penso”, mas um nós pensamos”. Não é o “eu penso” o
que constitui o “nós pensamos”, mas, pelo contrário, é o “nós pensamos” que me faz
possível pensar.
Na situação gnosiológica, o objeto de conhecimento não é o termo do conhecimento
dos sujeitos cognoscentes, mas a sua mediação.
O tema que tenho diante de mim, como núcleo de minha reflexão, não pode ser o
término de meu ato de conhecer porque é e deve ser o objeto que estabelece as
relações cognoscentes entre mim e os prováveis leitores do artigo, como sujeitos,
também, de conhecimento.
Assim, gostaria realmente de convidá-los a assumir este papel, recusando-se desta
forma a transformar-se em meros recipientes de minha análise.
Isto significa então que, ao escrever, não posso ser um puro narrador de algo que
considere como um fato dado, mas, pelo contrário, tenho de ser uma mente critica,
inquieta, curiosa, constantemente em busca, admitindo-me como se estivesse com os
leitores, que, por sua vez, devem recriar o esforço de minha busca.
A única diferença entre eu e os leitores, com relação ao tema mesmo, é que,
enquanto estou em face dele, comprometido com sua clarificação e mais e mais
fixando minha curiosidade sobre ele, os leitores estarão, de um lado, também em face
dele mas, de outro, de minha compreensão dele, que expresso em meu artigo.
De fato, ler, como um ato de estudar, não é um simples passatempo, mas uma tarefa
séria, em que os leitores procuram clarificar as dimensões opacas de seu estudo.
Desta forma, ler é reescrever e não memorizar os conteúdos da leitura. Devemos
superar a ingênua compreensão do ato de ler e de estudar como um ato de “comer”.
Do ponto de vista desta falsa concepção que, como Sartre, poderemos chamar de
“concepção nutricionista do conhecimento”, aqueles que lêem e estudam devem
fazê-lo para tornar-se “intelectualmente gordos”. Daí o uso de expressões como
“fome de conhecimento”, “sede de saber”, ter ou não “apetência pelo saber”.
É a mesma falsa concepção que se encontra iluminando a prática educacional como
um ato de transferência de conhecimento. Em tal prática, os educadores são os
possuidores do conhecimento, enquanto os educandos são como se fossem “vasilhas
vazias” que devem ser enchidas pelos depósitos dos educadores. Desta forma, os
educandos não têm por que perguntar, questionar, desde que sua atitude não pode
ser outra senão a de receber, passivamente, o conhecimento que os educadores neles
depositam.
Se o conhecimento fosse algo estático e a consciência alguma coisa vazia, ocupando
um certo espaço no corpo, a prática educacional referida estaria correta. Mas não é
este o caso. O conhecimento não é essa coisa feita e acabada e a consciência é
“intencionalidade” ao mundo.
Ao nível humano, o conhecimento envolve a constante unidade entre ação e reflexão
sobre a realidade. Como presenças no mundo, os seres humanos são corpos
conscientes que o transformam, agindo e pensando, o que os permite conhecer ao
nível reflexivo. Precisamente por causa disto podemos tomar nossa própria presença
no mundo como objeto de nossa análise crítica. Daí que, voltando-nos sobre as
experiências anteriores, possamos conhecer o conhecimento que nelas tivemos.
Quanto mais somos capazes de desvelar a razão de ser de por que somos como
estamos sendo, tanto mais nos é possível alcançar também a razão de ser da
realidade em que estamos, superando assim a compreensão ingênua que dela
possamos ter.
É isto precisamente o que teremos de fazer – os leitores e eu – com relação ao tema
deste artigo.
No momento em que o escrevo, tanto quanto no em que os leitores leiam o que estou
escrevendo agora, temos de exercer aquela análise crítica antes referida. Isto é,
temos de ter, como objeto de nossa reflexão, nossas experiências ou as experiências
de outros sujeitos no campo que estamos tentando entender melhor. Assim nos será
possível, em diferentes momentos, e não necessariamente ao mesmo nível, começar
a perceber a real compreensão do contexto lingüistico: “o processo da ‘alfabetização’
política”, em que o substantivo alfabetização aparece metaforicamente. Considerando
a presença desta metáfora, parece-me que a melhor maneira de começar a nossa
análise é a de estudar, mesmo rapidamente, o processo da alfabetização de adultos,
do ponto de vista lingüístico – que, de resto, é político também – e sobre que a
metáfora se baseia.
Isto envolve, metodologicamente, algumas considerações em torno das diferentes
práticas no campo da alfabetização de adultos, que implicam em diferentes maneiras,
também, Como os analfabetos são compreendidos.
As práticas antagônicas, que refletem aquelas formas de perceber os analfabetos são,
de um lado, a que costumo chamar de “domesticadora”; do outro, a libertadora.‘
Jean Paul Sartre, Situations I, Librairie Gallimard, Paris, 1959.
Depois de descrever a primeira destas práticas, em algumas de suas principais
características, à luz de minha experiência na América Latina, discutirei como vejo a
segunda delas.
Isto não significa, porém, que o simples fato de desenvolver uma tal prática seja
bastante para libertar as classes oprimidas. Isto significa que tal prática ajuda a
libertação na medida em que contribui para que os alfabetizandos compreendam sua
realidade em termos críticos.
A primeira, como prática “domesticadora”, não importa se os educadores estão
conscientes disto ou não, tem, como conotação central, a dimensão manipuladora
nas. relações entre educadores e educandos em que, obviamente, os segundos são os
objetos passivos da ação dos primeiros. Desta forma, os alfabetizandos, como seres
passivos, devem ser “enchidos” pelas palavras dos educadores, em lugar de serem
convidados a participar criadoramente do processo de sua aprendizagem. As palavras
geradoras que são escolhidas pelos educadores, dentro de seu marco cultural de
referência, são apresentadas aos alfabetizandos como se fossem algo separado da
vida. Como se linguagem-pensamento fosse possível sem realidade. Por outro lado,
em tal prática educacional, as estruturas sociais nunca são discutídas como um
problema a ser desnudado. Pelo contrário, elas são mitologizadas por diferentes
formas de anão que reforçam a “consciência falsa” dos alfabetizandos.
De qualquer modo, em fazendo a crítica desta prática, penso ser necessário aclarar
que o educador burguês consciente – não importa se professor primário, secundário,
universitário ou se trabalhando no setor da alfabetização de adultos – não pode fazer
outra coisa senão engajar-se numa tal forma de ação.
Seria na verdade uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes
desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas
perceber as injustiças sociais de maneira crítica.
Uma tal constatação demonstra a impossibilidade de uma educação neutra. Para a
consciência ingênua, porém, uma afirmação como esta pode ser interpretada como se
eu estivesse dizendo que, em não sendo neutra, a educação devesse ser (ou fosse.
sempre) a prática através da qual os educadores não respeitassem expressividade
dos educandos.
Isto é exatamente o que caracteriza a educação “domesticadora”, mas não a de
caráter libertador. Nesta ultima, peló contrário, a educação é o procedimento no qual
o educador convida os educandas a conhecer, a desvelar a realidade, de modo critico.
Assim, enquanto aquela pro cura estimular a “consciência falsa” dos educandos, de
que resulta mais fácil sua adaptaçãa à realidade, a segunda não pode ser um esforço
pelo qual o educador impõe liberdade aos educandos.
É que, enquanto na educação domesticadora há uma necessária dicotomia entre os
que manipulam e os que são manipulados, na educação para a libertação não há
sujeitos que libertam e objetos que são libertados. Neste processo não pode haver
dicotomia entre seus pólos.
Assim, o primeiro processo é, em si, prescritivo; o segundo, dialógico.
Por isto, a educação para a “domesticação” é um ato de transferência de
“conhecimento”, enquanto a educação para a libertação é um ato de conhecimento e
um método de ação transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a
realidade.
Desta forma, o processo de alfabetização de adultos, visto de um ponto de vista
libertador, é um ato de conhecimento, um ato criador, em que os alfabetizandos
exercem o papel de sujeitos cognoscentes, tanto quanto os educadores. Obviamente,
entao, os alfabetizandos não são vistos como “vasilhas vazias”, meros recipientes das
palavras do educador.
Deste ponto de vista, ainda, os alfabetizandos não são seres marginais que
necessitem ser recuperados ou resgatados. Em lugar de assim serem considerados,
eles são vistos como membros da grande família de oprimidos para quem a solução
não está em aprender a ler estórias alienadas, mas em fazer história e por ela serem
feitos.
Se começamos a considerar agora o problema da “alfabetização” política, parece que
nosso ponto de partida deva ser a análise do que é o “analfabeto” político.
Se, do ponto de vista lingüistico, o analfabeto é aquele ou aquela que não sabem ler e
escrever, o “analfabeto” político – não importa se sabe ler e escrever ou não – é
aquele ou aquela que têm uma percepção ingênua dos seres humanos em suas
relações com o mundo, uma percepção ingênua da realidade social que, para ele ou
ela, é um fato dado, algo que é e não que está sendo.
Uma de suas tendências é fugir da realidade concreta – uma forma de negá-la –
perdendo-se em visões abstratas do mundo.
De qualquer forma, contudo, não lhe é possível fugir da realidade na qual continua,
sem assumir contudo, criticamente, sua presença nela.
Se é um cientista, tenta “esconder-se” no que considera a neutralidade de sua
atividade científica, indiferente ao uso que se faça de seus achados, desinteressado
em sequer pensar a serviço de quem trabalha. Quase sempre, ao ser indagado sobre
isto, responde vagamente que está a serviço dos interesses da humanidade.
Se é um religioso, estabelece a impossível separação entre mundanidade e
transcendência.
Se opera no campo das ciências sociais, trãta a sociedade, enquanto objeto de seu
estudo, como se dela não participasse. Em sua decantada imparcialidade, se
aproxima da realidade em estudo com “luvas” e “máscaras” para não contagiar nem
contagiar-se...
Sua concepção da história é mecanicista e fatalista. A história é o que foi e não o que
está sendo e em que se gesta o que está por vir. O presente é algo que deve ser
normalizado e o futuro, a repetição do presente, o que significa a manutenção do
“status quo”.
Neste sentido, muitos analfabetos e semi-analfabetos, do ponto de vista lingüístico, são, porém,
politicamente “letrados”, muito mais do que certos letrados eruditos. E não há nisto nenhuma razão de
espanto. A prática política daqueles, sua experiência nos conflitos – no fundo a parteira real da consciência –
lhes ensina o que os últimos não aprendem ou não conseguem aprender nos seus livros.
Às vezes, contudo, o “analfabeto” político percebe o futuro, não como a repetição do
presente, mas como algo preestabelecido, pré-dado. São visões, estas,
domesticadoras do futuro. A primeira o domestica ao presente, que deve ser repetido;
a segunda o reduz a algo inexorável. Ambas negam os seres humanos como seres da
práxis e, ao fazê-lo, negam também a história. Sofrem ambas da falta de esperança.
O “analfabeto” político, experimentando um sentimento de impotência em face da
irracionalidade de uma realidade alienante e todo-poderosa, procura refugiar-se na
falsa segurança do subjetivismo. Às vêzes, em lugar deste refúgio, devota-se a
práticas puramente ativistas. Talvez se pudesse comparar o “analfabeto” político,
entregue a estas práticas, de caráter político, com o outro analfabeto, o que, lendo
mecanicamente um texto, não percebe, contudo, o que lê.
Em nenhum desses casos pode ele compreender os seres humanos como presenças
no mundo, como seres da práxis – da ação e da reflexão sobre o mundo.
A dicotomia entre teoria e prática, a universalidade de um conhecimento isento de
condicionamento histórico-sociológico, o papel da filosofia como explicação do mundo
e instrumento para sua aceitação, a educação como pura exposição de fatos, como
transferência de valores abstratos, da herança de um saber casto, tudo isso são
crenças que a consciência ingênua do “analfabeto” político sempre proclama.
Para uma tal consciência é difícil entender a real impossibilidade de teoria sem
prática, de pensamento sem ação transformadora sobre o mundo, saber por saber,
teoria que somente explique a realidade e educação neutra.
Por outro lado, quanto mais refinada é a consciência ingênua do “analfabeto” político,
tanto mais refratário se faz à compreensão crítica da realidade.
Na primeira parte deste artigo, passei algum tempo analisando o processo de
alfabetização para a domesticação.
Gostaria agora de discutir, em linhas também gerais, alguns aspectos do que penso
deve ser a educação de um ponto de vista critico. Aquela em que, pela
desmitologização da realidade, se ajudem educadores e educandos na superação do
“analfabetismo” político.
De vez em quando, farei referências a ângulos anteriorme nte analisados. Espero,
porém, que estes retornos, em lugar de irritarem os leitores, nos ajudem a mim e a
eles na melhor clarificação de nosso tema comum.
Começarei afirmando ou reafirmando que, se não superarmos a prática da educação
como pura transferência de um conhecimento que somente descreve a realidade,
bloquearemos a emergência da consciência critica, reforçando assim o
“analfabetismo” político.
Temos de superar esta espécie de educação – se nossa opção é realmente
revolucionária – por uma outra, em que conhecer e transformar a realidade são
exigências recíprocas.
Não me parece necessário enfatizar que uma tal educação não pode ser posta em, prática pelas classes
dominantes. O lamentável, porém, é que não o seja em uma sociedade que fez a revolução ou que não seja
experimentada pelos movimentos revolucionários, no seu esforço organizacional das classes dominadas.
Há um ponto de fundamental importância a ser sublinhado na superação da prática
educativa domesticadora pela libertadora. Refiro-me à impossibilidade de uma real
práxis libertadora se o educador segue o modelo do “domesticador”.
Enquanto este é sempre o educador dos educandos, o educador para a libertação tem
de “morrer” enquanto exclusivo educador dos educandos no sentido de renascer, no
processo, como educador – educando dos educandos. Por outro lado, tem de propor
aos educan-dos que também “morram” enquanto exclusivos educandos do educador
para que renasçam como educandos-educadores do educador-educando.
Sem esta “morte” mútua e sem este mútuo “renascimento” a educação para a
libertação é impossível.
Isto não significa, obviamente, que o educador desapareça como se fosse uma
presença desnecessária. Rejeitando a manipulação, jamais aceitei o espontaneísmo.
A educação, como instrumento de reprodução da ideologia dominante ou como um
método de ação transformadora revolucionária, exige sempre essa presença. Há,
contudo, uma radical diferença entre as duas formas de estar presente e de ser
presença. Freinet, para falar apenas num dos grandes pedagogos contemporâneos
inscritos na perspectiva libertadora, jamais dejxou de estar presente, mas jamais,
também, exacerbou sua presença a ponto de transformar a presença dos educandos
em sombra da sua.
Impõe-se, realmente, ao educador em tal linha estar desperto para o fato de que, no
momento mesmo em que se inicia no processo, está se preparando para “morrer”
como exclusivo educador do educando. Ele não pode ser um educador para a
libertação se apenas substitui o conteúdo da prática burguesa por outro, mantendo,
contudo, a forma daquela prática.
No fundo, tem de viver a profunda significação da Páscoa.
Por esta razão, um dos trágicos equívocos de algumas sociedades socialistas, de que
pelo menos Cuba e China são exceções, está em que não têm sido capazes, em
termos profundos, de superar o caráter “domestic ador” da educação burguesa à cuja
herança se soma a do stalinismo.
Assim, quase Sempre, a educação socialista se confunde com a redução do
pensamento marxista – um pensamento que, em si mesmo, não pode ser “enjaulado”
– a “tabletes” que devem ser “digeridos”.
Deste modo, seus educadores caem na mesma prática “nutricionista” que caracteriza
a educação domesticadora.
Perpetuando a escola como instrumento de controle social, dicotomizando ensinar de
aprender, esquecem a fundamental advertência de Marx em sua Terceira Tese sobre
Feuerbach: “o educador deve também ser educado”.
Desta forma, estimulam o “analfabetismo” político, através de uma educação que, em
contradição com os reais objetivos socialistas, desdialetiza o pensamento.
A persistência da ideologia burguesa, em alguns de seus aspectos, se expressa numa
estranha espécie de ideálismo segundo o qual, alcançada a transformação da
sociedade burguesa, um “novo mundo” é automaticamente criado.
Na verdade, porém, esse mundo novo não surge assim. Ele é criado no processo
revolucionário que, devendo ser permanente, não se esgota com a chegada da
revolução ao poder. A criação desse mundo novo, que jamais deve ser “sacralizado”,
exige a participação consciente das grandes massas populares, a superação da
dicotomia trabalho manual – trabalho intelectual e uma forma de educação que não
repita a burguesa.
Este é um dos grandes méritos da revolução cultural chinesa – o de recusar qualquer
concepção estática, antidialética, imobilista da história. Daí a permanente mobilização
do povo, no sentido de, conscientemente, criar e recriar sua sociedade. Ser
consciente, na China, não é um “slogan” ou uma frase feita. Ser consciente é a forma
radical de ser dos seres humanos.
Algumas notas sobre
humanização e suas implicações pedagógicas
Genebra – 1970
Nenhum tema é apenas o que aparece na forma lingüística que o expressa. Há
sempre algo mais oculto, mais profundo, cuja explicitação se faz indispensável à sua
compreensão geral. Desta forma, escrever sobre um tema implica em buscar, tanto
quanto possível, romper as aparências enganosas que podem conduzir-nos a uma
distorcida visão do mesmo. Isto significa que temos de realizar o esforço difícil de
desembaraçá-lo destas aparências para apanhá-lo como fenômeno dando-se numa
realidade concreta.
Por esta operação, que é uma operação de busca, vamos ao encontro do tema na
riqueza de suas interrelações com aspectos particulares, às vezes não suspeitados,
mas que lhe são solidários. Tanto mais sejamos capazes de um tal adentramento
nele, quanto mais poderemos captá-lo em seu complexo dinamismo.
Desta forma, escrever sobre um tema, como o entendemos, não é um mero ato
narrativo. Ao apreendê-lo, como fenômeno dando-se na realidade concreta, que
mediatiza os homens, quem escreve tem de assumir frente a ele uma atitude
gnosiológica.
Os que lêem, por sua vez, assumindo a mesma atitude, têm de re-fazer o esforço
gnosiológico anteriormente feita por quem escreveu. Isto significa que quem lê não
deve ser um simples paciente do ato gnosiológico daquele. Ambos, finalmente,
precisam evitar o equívoco socrático que tornava a definição do conceito como o
conhecimento da coisa definida.
Desta forma, o que temos de fazer nào é propriamente definir o conceito do tema,
nem tampouco, tomando o que ele envolve como um fato dado, simplesmente
descrevê-lo ou explicá-lo mas, pelo contrário, assumir perante ele uma atitude
comprometida. Atitude de quem não quer apenas descrever o que se passa como se
passa, porque quer, sobretudo, transformar a realidade para que, o que agora se
passa de tal forma, venha a passar-se de forma diferente.
Esta atitude comprometida em face dos temas, porém, não significa que, no processo
de conhecer a realidade como se está dando, partamos de posições preconcebidas.
Isto é, de posições que, distorcendo os fatos nos quais se encontram envolvidos os
temas, terminariam por “domesticá-los” à nossa vontade.
Ao procurar conhecer cientificamente a realidade em que se dão os temas, não
devemos submeter nosso procedimento epistemológico à “nossa verdade”, mas
buscar conhecer a verdade dos fatos. Isto não quer dizer, contudo, que ao empenharnos
no conhecimento científico da realidade, devamos assumir em face dela, como
dos resultados de nossa investigação, uma atitude neutra. É necessário não
confundirmos a preocupação com a verdade, que deve caracterizar todo esforço
científico realmente sério, com a tão propalada neutralidade da ciência, que de fato
não existe.
Nossa atitude comprometida – e não neutra – diante da realidade que buscamos
conhecer resulta, num primeiro momento, de que o conhecimento é processo que
implica na ação – reflexão do homem sobre o mundo. Acontece, porém, que o caráter
teleológico da unidade ação-reflexão, isto é, da práxis, com que o homem,
transformando o mundo, se transforma, não pode prescindir daquela atitude
comprometida que, desta forma, em nada prejudica nosso espírito crítico ou nossa
cientificidade. O que não nos é legítimo fazer é pôr-nos indiferentes ao destino que
possa ser dado a nossos achados por aqueles que, detendo o poder das decisões e
submetendo a ciência a seus inte-resses, prescrevem suas finalidades às maiorias.
Por outro lado, a atitude comprometida diante dos temas se explica ainda pelo fato de
que todo tema tem o seu contrário e envolve tarefas a serem cumpridas, tão
antagônicas entre si quanto contrários os temas entre eles. Assim, ao adentrar-nos na
compreensão de um tema, ao desvelá-lo, desvelamos igualmente o seu contrário, o
que nos impõe uma opção que, por sua vez, passa a exigir de nós uma forma de ação
coerente com as tarefas apontadas no tema. Daí que, no exercício destas tarefas, ao
mesmo tempo em que temos de ser eficientes, não podemos desenvolver um tipo de
ação que cnrresponde à eficiência do tema antagônico. Quanto mais vamos
conhecendo a realidade histórico-social em que se constituem os temas em relação
dialética com seus contrários, tanto mais nos é impossível tornar-nos neutros em face
deles. Por isso mesmo é que toda neutralidade proclamada é sempre uma opção
escondida. É que os temas, insistamos, enquanto históricos, envolvem orientações
valóricas dos homens na experiência existencial dos mesmos.
Não pode ser outra a nossa posição em face do tema que agora nos reúne – tal o da
humanização dos homens e suas implicações educativas.
No momento mesmo em que nos aproximamos, criticamente, a este processo e o
reconhecemos como um tema, somos obrigados a apreendê-lo, não como um ideal
abstrato, mas como um desafio histórico, em sua relação contraditória com a de
desumanização que se verifica na realidade objetiva em que estamos. Isto significa
que desumanização e humanização não podem ocorrer a não ser na história mesma
dos homens, dentro das estruturas sociais que os homens criam e a que se acham
condicionados.
A primeira, como expressão concreta de alienação e dominação; a segunda, como
projeto utópico das classes dominadas e oprimidas. Ambas implicando, obviamente,
na ação dos homens sobre a realidade social – a primeira, no sentido da preservação
do “status quo”; a segunda, no da radic al transformação do mundo opressor.
Parece-nos importante enfatizar esta obviedade – a da relação entre desumanização e
humanização, bem como o fato de que ambas demandam a ação dos homens sobre a
realidade, ora para mantê-la, ora para modificá-la, para que evitemos as ilusões
idealistas, entre elas a que sonha com a humanização dos homens sem a
transformação necessária do mundo em que eles se encontram oprimidos e proibidos
de ser. Uma tal ilusão, que satisfaz os interesses de todos quantos têm condições
favoráveis de vida, revela facilmente a ideologia que se concretiza em formas
assistencialistas de ação em que os proibidos de ser são convidados a esperar com
paciência por dias melhores que, mesmo tardando, não faltarão...
Não há, porém, humanização na opressão, assim como não pode haver
desumanização na verdadeira libertação. Mas, por outro lado, a libertação não se dá
dentro da consciência dos homens, isolada do mundo, senão na práxis dos homens
dentro da história que, implicando na relação consciência-mundo, envolve a
consciência crítica desta relação.
Aí está um dos pontos fundamentais das implicações pedagógicas do processo da
humanização, que nos leva à percepção de outra impossibilidade sublinhada por nós
em diferentes trabalhos – a da neutralidade da educação. Desta forma, assim como a
luta pela humanização pressupõe a desumanização, como fato concreto ou como
ameaça, assim também ambas envolvem práticas educativas antagônicas. É que,
como temas contrários entre si, a humanização e a desumanização apontam tarefas
educativas necessariamente contrárias também. Por isto é que o educador que fez a
opção humanista, portanto, libertadora, não estará apto a cumprir a tarefa vinculada
ao tema de sua opção, enquanto não tenha sido capaz, através de sua própria
prática, de perceber corretamente as relações dialéticas consciência-mundo ou
homem-mundo.
É que, no fundo, uma das radicais diferenças entre a educação como tarefa
dominadora, desumanizante, e a educação como tarefa humanizante, libertadora,
está em que a primeira é um puro ato de transferência de conhecimento, enquanto a
segunda é ato de conhecer. Estas tarefas radicalmente opostas, que demandam
procedimentos da mesma forma opostos, incidem ambas, como não podia deixar de
ser, sobre a relação consciência-mundo.
Assim, enquanto para a educação como tarefa dominadora, nas relações consciência -
mundo, aquela aparece como se fosse e devesse ser um simples recipiente vazio a
ser “enchido”, para a educação como tarefa libertadora e humanista a consciência é
“intencionalidade” até o mundo.
No primeiro caso, o caráter ativo, captador do conhecimento existente, que tem a
consciência, é negado.
Daí que, na educação como tarefa dominadora, a negação daquele caráter ativo da
consciência envolva o uso de práticas pelas quais se busca “domesticá-lo”,
procurando-se, assim, transformar a consciência naquele recipiente vazio acima
referido. Desta forma, a educação ou ação cultural para a dominação não pode ser
nada mais que aquele ato através do qual o educador, como “o que sabe”,transfere
ao educando, como “o que não sabe”, o conhecimento existente.
No segundo caso, pelo contrário, ao constatar-se o caráter ativo, indagador,
pesquisador da consciência, como consciência reflexiva e não apenas reflexa, que lhe
faz possível conhecer, automaticamente se constata a faculdade que ela tem, de um
lado, de reconhecer ou de re-fazer o conhecimento existente; de outro, de desvelar e
de conhecer o ainda não conhecido. Se assim não fosse, isto é, se a consciência que
pode reconhecer o conhecimento existente não fosse capaz de buscar novos
conhecimentos, não haveria como explicar o próprio conhecimento hoje existente,
uma vez que, como processo, o conhecimento que hoje existe foi viabilidade e logo
depois conhecimento novo, com relação ao conhecimento existente ontem e assim
sucessivamente.
Deste modo, a educação ou a ação cultural para a libertação, em lugar de ser aquela
alienante transferência de conhecimento, é o autêntico ato de conhecer, em que os
educandos – também educadores – como consciências “intencionadas” ao mundo ou
como corpos conscientes, se inserem com os educadores – educandos também – na
busca de novos conhecimentos, como conseqüência do ato de reconhecer o
conhecimento existente. Mas – não será demasiado reenfatizar – para que a
educação, como prática da libertação, possa tentar a realização de um tal
reconhecimento do conhecimento existente, de que decorre a procura de novos
conhecimentos, jamais pode fazer coincidir sua forma de “tratar” a consciência do
homem com o modo pelo qual a “trata” a educação dominadora. Daí a neçessidade a
que fizemos referência anteriormente de o educador, que fez a opção humanista,
perceber corretamente as relações consciência-mundo ou homem-mundo.
É por esta razão que a prática educativo-libertadora se obriga a propor aos homens
uma espécie de “arqueologia” da consciência, através de cujo esforço eles podem, em
certo sentido, refazer o caminho natural pelo qual a consciência emerge capaz de
perceber-se a si mesma. No processo de “hominização” em que a reflexão se
instaura, se verifica o “salto individual, instantâneo, do instinto ao pensamento”.
Desde aquele remotíssimo momento, porém, a consciência reflexiva caracterizou o
homem como um animal não apenas capaz de conhecer, mas também capaz de
saber-se conhecendo. Desta forma, ao emergir, a consciência emerge como
“intencionalidade” e não como recipiente a ser enchido.
A percepção critica deste fato, de um lado, desfaz o dualismo simplista que estabelece
uma inexistente dicotomia entre a consciência e o mundo; de outro, retifica o
equivoco em que se encontra a consciência ingênua, ideologizada nas estruturas da
dominaçào, tal o de considerar-se como aquele recipiente vazio a ser enchido de
conteúdos.
Por isto mesmo é que, quanto mais sejam os homens “anestesiados” no seu poder
reflexivo, que ao ser adquirido, no processo de sua evolução,os distingue
fundamentalmente dos animais, tanto mais se encontram obstaculizados de libertarse
verdadeiramente. Parece fácil, assim, entender como, do pont o de vista da
ideologia desumanizante, se faz indispensável evitar, a todo custo, qualquer esforço
através do qual o homem se perceba como um ser reflexivo, ativo, criador,
transformador do mundo. E como interessa, pelo contrário, a tal ideologia,
operacionalizar a concepção domesticadora da consciência como espaço vazio que
deve ser enchido.
Diante de seus objetivos e da procura de realizá-los, as classes dominantes se
defrontam, porém, com um obstáculo que vêm tentando superar, cada vez mais
eficientemente, através da ciência e da técnica a seu serviço. Não lhes sendo possível
matar ou fazer desaparecer a capacidade de pensar dos homens, mitificam a
realidade, condicionando-lhes um pensar falso sobre si e sobre o mundo.
A mitificação da realidade consiste em fazê-la passar pelo que ela não está sendo.
Desta forma, como processo, tal mitificação implica, necessariamente, na falsificação
da consciência. É que seria impossível falsificar a realidade, como realidade da
consciência, sem falsificar a consciência da realidade. Uma não existe sem a outra.
Teilhard de Chardin, El Fenómeno humano, Taurus, Madri, 1963, pág. 218.
Teilhard de Chardin, op. cit.
Não queremos com isto dizer que o simples uso da capacidade reflexiva seja suficiente para a libertação.
É claro que a libertação demanda a ação transformadora sobre a realidade objetiva que os homens se acham
oprimidos, portanto, desumanizados. Mas, como não há autêntica reflexão sem ação e vice-versa, ambas, em
última análise, indicotomizavelmente, constituem a real práxis dos homens sobre o mundo, sem a qual é
impossível a libertação.
Assim como o processo de libertação envolve aquela “arqueologia” da consciência
através da qual, como dissemos antes, o homem refaz o caminho natural pelo qual a
consciência emerge capaz de perceber-se, no processo de dominação a mitificação
implica no desenvolvimento da “irracionalidade”. Esta, contudo, não significa um
retorno a uma forma de vida meramente instintiva, mas a distorção da razão. O
elemento mítico aí introduzido não proíbe propriamente que o homem pense; dificulta
o exercício de sua criticidade, dando ao homem a ilusão de que pensa certo. A
propaganda se instaura, então, como o instrumento eficiente para a efetivação desta
ilusão. Através dela, não apenas se propalam as “excelências” da ordem social, mas
também se difunde que toda tentativa de indagação em torno dela é em si “um ato
subversivo e pernicioso ao bem comum”. Desta forma, a mitificação conduz à
“sacralização” da ordem social, que não permite ser tocada nem discutida. Daí que
todos os que tentam fazê-lo tenham de ser punidos, desta ou daquela forma , e
sejam perfilados, através também da propaganda, como “maus cidadãos a serviço da
demonização internacional”.
A “sacralização” da ordem social domesticadora é tão necessária à sua preservação
quanto a “abertura” critica o é à sociedade que se insere na busca permanente da
humanização dos homens. Por isto, obviamente, todo esforço de mitificação tende a
tornar-se totalizador, isto é, tende a atingir o quefazer humano em todas as suas
dimensões. Nenhuma esfera pode escapar à falsificação, pois qualquer exceção pode
vir a converter-se em ameaça à “sacralização” da ordem estabelecida. Neste sentido,
a escola, não importa qual seja o seu nível, vem desempenhando um papel dos mais
importantes, como efic iente instrumento de controle social. Não são raros os
educadores para quem “educar é adaptar o educando a seu meio” e a escola, em
regra, não vem fazendo outra coisa senão isto.
De modo geral, o bom aluno nâo é o inquieto, o indócil, o que revela sua dúvida, o
que quer conhecer a razão dos fatos, o que rompe os modelos prefixados, o que
denuncia a burocracia mediocrizante, o que recusa ser objeto. O bom aluno, ao
contrário, é o que repete, é o que renuncia a pensar criticamente, é o que se ajusta
aos modelos, é o que “acha bonito ser rinoceronte”.
Por outro lado, o professor, que se “diviniza” na sacralidade da escola igualmente
sacralizante é, quase sempre, um intocável, nâo apenas com relação à sua autoridade
mitificada, mas até – e coerentemente – quant o a seu corpo. O aluno não pode, num
gesto afetivo, sequer por-lhe a mão no ombro. Esta intimidade de mortais ameaçaria
a distância necessária entre ele e os educandos... Estes, afinal, não têm nada a fazer
a não ser receber os conteúdos que o educador lhes transfere, acrescidos do caráter
ideológico necessário aos interesses da ordem “sacralizada”.
What did you learn in school today, dear little boy of mine?
What did you learn in school today, dear little boy of mine?
I learned that Washington never told a lie,
I learned that soldiers seldom die,
I learned that everybody’s free,
And that’s what the teacher said to me.
Os níveis de punição variam em função dos níveis de oposição daqueles que recusam acomodar-se à
“bovinização” imposta pela ordem opressora.
Ver lonesco, Rhinocéros.
That’s what I learned in school today,
That’s what I learned in school.
I learned that policemen are my friends,
I learned that justice never ends,
I learned that murderers die for their crimes
Even if we make a mistake sometimes.
I learned our government must be strong,
It’s always right and never wrong
Our leaders are the finest men
And we elect them again and again.
I learned that war is not so bad,
I learned about the great ones we have had,
We’ve fought in Germany and in France,
And someday I may get my chance.
That’s what I learned in school today,
That’s what I learned in school.
Com uma ou outra diferença, esta bem pode ser a canção que milhões de meninos de
diferentes partes do mundo poderão cantar se lhes perguntarmos o que aprenderam
hoje na escola.
Mas, se nossa curiosidade cresce e passamos a perguntar aos jovens o que
aprenderam hoje na Universidade, sua resposta não será em nada dramaticamente
inferior à do menino da canção de Tom Paxton. Poderão dizer, entre outras coisas:
Aprendemos hoje na Universidade que a objetividade da ciência implica na
neutralidade do cientista; aprendemos hoje que o saber é puro, universal e
incondicionado e que a Universidade é a Sede deste saber.
Aprendemos hoje, ainda quando não verbalizadamente, que o mundo se divide entre
os que sabem e os que não sabem – isto é, os que trabalham – e a Universidade é a
Casa dos primeiros. Aprendemos hoje que a Universidade, enquanto Templo de um.
Saber casto, tem de pairar acima das terrestres preocupações como, por exemplo, a
da libertação dos homens.
Aprendemos hoje que a realidade é um fato dado; que ela é o que é e que nossa
imparcialidade científica nos permite apenas descrevê-la como é. Por isto mesmo,
para descrevê-la como é, não temos de indagar as razões maiores que a explicam
como é. Se, pelo contrário, procuramos denunciá-la como está sendo para anunciar
uma nova forma de ser, aprendemos hoje na Universidade que já não seremos
cientistas, mas ideólogos...
Aprendemos hoje que o desenvolvimento econômico é um problema puramente
técnico; que os povos subdesenvolvidos são incapazes – às vezes, por mestiçagem,
às vezes, por questão de clima, às vezes, por natureza.
Fomos informados hoje de que os negros aprendem menos que os brancos porque
são geneticamente inferiores, mesmo que revelem certas indiscutíveis capacidades,
Tom Paxton, cantado por Pete Seeger.
como, por exemplo, a de correr, a de usar as mãos, a de resistir fisicamente a
trabalhos ma is pesados.
O indubitável é que toda esta mitificação, através da escola ou não, termina por
obstaculizar a capacidade crítica dos homens, em favor da preservação do “status
quo”.
A introjeção destes como a de outros tantos mitos explica formas de ação
contraditórias com as opções proclamadas por muitos.
Falam no respeito à pessoa humana e a pessoa humana se esclerosa numa frase
banal, pois não a reconhecem nos homens concretos que se encontram dominados e
“coisificados”.
Dizem-se comprometidos com a libertação e agem de acordo com os mitos que
negam a humanização.
Analisam os mecanismos sociais de repressão mas, ao mesmo tempo, através de
meios igualmente repressivos, freiam os estudantes a quem falam.
Dizem-se revolucionários mas, ao mesmo tempo, não crêem nas classes oprimidas a
quem pretendem conduzir à libertação, como se isto não fosse uma contradição
aberrante.
Querem a humanização dos homens mas, ao mesmo tempo, querem também a
manutenção da realidade social em que os homens se acham desumanizados.
No fundo, temem a liberdade. Ao temê -la, porém, não podem arriscar-se a construí-la
na comunhão com os que se acham dela privados.
O papel educativo das Igrejas na América Latina
Escrito em 1971, este trabalho foi publicado em 1973 por Study Encouter Genebra,
sob o título Education, Liberation and the Church.
Começaremos este ensaio com uma afirmação que, revelando nossa clara posição
diante do objeto de nosso estudo é, também, ao mesmo tempo, uma obviedade. Não
podemos discutir, de um lado, as Igrejas, de outro, a educaçâo e, finalmente, o papel
das primeiras com relação à segunda, a não ser historicamente.
As Igrejas, de fato, não existem, como entidades abstratas. Elas são constituídas por
mulheres e homens “situados”, condicionados por uma realidade concreta,
econômica, política, social e cultural. São instituições inseridas na história, onde a
educação também se dá. Da mesma forma, o quefazer educativo das Igrejas não
pode ser compreendido fora do condicionamento da realidade concreta em que se
acham.
No momento, porém, em que levamos a sério tais afirmações, já não podemos aceitar
a neutralidade das Igrejas em face da história, assim como a neutralidade da
educaçâo.
Deste modo, entre os que proclamam esta neutralidade, vamos encontrar, de um
lado, os ingênuos, de diferentes matizes, “inocen-tes”, com a melhor das intenções,
na sua percepção da Igreja e da história. De outro lado, os/as que, “espertamente”,
escondem sua opção real.
Do ponto de vista objetivo, contudo, todos eles se identificam nas conseqüências de
suas práticas. Ao insistirem na inviável neutralidade da Igreja em face da história, em
face das atividades políticas, não fazem outra coisa senão exercer uma atividade
política, em favor, porém, das classes dominantes e contra as classes dominadas. Não
se pode “lavar as mãos” em face de inconciliáveis, a não ser tomando-se o partido
dos fortes.
Há, porém, um modo sutil, pouco explícito, às vezes, de servir aos interesses dos
fortes dando a aparência de uma ação em favor das classes oprimidas. Mais uma vez,
nesta modalidade deação, vamos encontrar, de mãos dadas, os “inocentes” e os
“espertos” anteriormente referidos, mesmo que os “inocentes” não o saibam.
Referimo-nos aqui às práticas que costumamos chamar de “ação anestesiadora” ou de
“ação aspirina”, expressões de um idealismo subjetivista que só pode levar à
preservação do “status quo”.
São estas, em última análise, modalidades de ação, cujo pressuposto consiste na
ilusão – ou em fazer crer nela – de que é possível transformar o coração dos homens
e das mulheres, deixando, contudo, virgens, intocadas, as estruturas sociais em que o
“coração” não pode ter “saúde”.
Esta ilusão de que, com prédicas, obras humanitárias e o desenvolvimento de uma
racionalidade desgarrada do mundo é possível, primeiro, mudar as consciências,
depois, transformar o mundo, existe apenas naqueles que chamamos de “inocentes” e
a quem Niebuhr chama de “moralistas”.
Os “espertos” sabem muito bem que, com tais formas de ação, retardam o processo
fundamental que é, na verdade, o da transformação radical das estruturas sociais
para que se possa dar, com a instauração de uma nova prática social, a mudança das
consciências. Mudança que, por sua vez, não é mecanicamente automática.
Mas ainda quando, objetivamente, como já salientamos, os resultados da ação de uns
e de outros sejam igualmente prejudiciais, do ponto de vista da libertação das classes
dominadas, há uma importante diferença, entre eles, que merece ser ressaltada.
Uns e outros “atravessam” a ideologia das classes dominantes e por ela são
“atravessados”, mas os “espertos” assumem esta ideologia. São bastante conscientes
do que fazem.
Os “inocentes”, por sua vez, através de sua própria prática histórica, ao desvelar a
realidade e sendo nela desvelados, tanto podem assumir a ideologia da dominação,
transformando, assim, sua “inocência” em “esperteza”, quanto podem renunciar a
suas ilusões idealistas. Neste caso, então, retiram sua adesão acrítica às classes
dominantes e, comprometendo-se com as classes oprimidas, iniciam uma nova
aprendizagem com elas.
Isto não significa porém que o seu compromisso com as classes dominadas já se
tenha selado em forma verdadeira. É que, na prática de seu novo aprendizado, terão
de enfrentar, de modo mais sério e mais profundo, o caráter arriscado do existir. E
não é fácil fazê-lo.
A primeira exigência que este novo aprendizado lhes faz abala fortemente sua
concepção elitista da existência, que haviam introjetado no processo de sua
ideologização.
Este aprendizado requer, como condição “sine qua”, que eles façam realmente sua
Páscoa. Isto é, que “morram” comó elitistas para renascerem como revolucionários,
por mais humilde que seja sua tarefa como tais.
Isto implica na renúncia de seus mitos, tão caros a eles. O mito de sua
“superioridade”, o mito de sua pureza de alma, o mito de suas virtudes, o mito de seu
saber, o mito de que sua tarefa é salvar os pobres. O mito da inferioridade do povo, o
mito de sua impureza, não só espiritual, mas física, o mito de sua ignorância
absoluta.
Reinhold Niebuhr, Moral man and immoral society, Charles Scribner’s Sons, Nova York, 1960.
Certa vez, em um dos vários seminários de que participamos em diferentes partes da América Latina,
ouvimos de um dos presentes:
“Se o senhor diz que não é possível diálogo entre antagônicos, como posso então dialogar com os
favelados?”
– Por quê? perguntamos.
“Porque somos antagônicos”.
– Como explica seu antagonismo?
“Eu sei, eles não sabem. Além disto, eles são malcheirosos”.
Dentro de toda a sua sabedoria, o homem de nosso exemplo não sabia algo tão óbvio. Que sua condição de
classe lhe dava a possibilidade de banhar-se com água quente no inverno duro, de usar cheirosos sabonetes e
Cedo percebem que a indispensável Páscoa, de que resulta a mudança de sua
consciência, tem realmente de ser existenciada. A Páscoa verdadeira não é
verbalização comemorativa, mas práxis, compromisso histórico. A Páscoa na
verbalização é “morte” sem ressurreição. Só na autenticidade da práxis histórica, a
Páscoa é morrer para viver. Mas uma tal forma de experimentar-se na Páscoa,
eminentemente biofílica, não pode ser aceita pela visão burguesa do mundo,
essencialmente necrofílica, por isso mesmo estática.
A mentalidade burguesa tenta matar o dinamismo histórico e profundo que tem a
Passagem. Faz dela uma simples data na folhinha.
A ânsia da posse, que é uma das conotações da forma necrofílica de ligação com o
mundo, recusa a significação mais profunda da Travessia. Na verdade, porém, não
posso fazer a Travessia se carrego em minhas mãos, como objetos de minha posse, o
corpo e alma destroçados dos oprimidos. Só posso empreender a Travessia com eles,
para que possamos juntos renascer como homens e mulheres libertando-nos. Não
posso fazer da Travessia um meio de possuir o mundo, porque ela é,
irredutivelmente, um meio de transformá -lo.
Da mesma maneira, aprendem que a consciência não se transforma através de cursos
e discursos ou de pregações eloqiientes. mas na prática sobre a realidade.
Assim, aprendem igualmente a distorção idealista, por exemplo, que faziam da tão
incompreendida conscientização quando pretendiam ter nela uma medicina mágica
para a cura dos “corações”, sem a mudança das estruturas sociais. Ou, noutra versão
não menos idealista, quando pretendiam ter na conscientização o instrumento
igualmente mágico para fazer a conciliação dos inconciliáveis. Dai que a
conscientização lhes aparecesse como uma espécie de “terceiro caminho”, através do
qual se evitassem os conflitos de classes.
Milagrosamente, a conscientização criaria um mundo de paz e de harmonia entre
classes opressoras e classes oprimidas, estabelecendo a necessária compreensão
entre elas. Conscientizadas umas e outras, já não haveria nas sociedades opressores
e oprimidos porque todos, amando-se fraternalmente, resolveriam as suas
dificuldades através de mesas-redondas, com bom café, ou bom pisco, ou boa tequilla
ou mesmo coca-cola.
No fundo, esta visão idealista, que só serve aos interesses das clas-ses dominantes, é
a mesma que Niebuhr condenou veementemente, chamando-a de moralista.
Tal mistificação da conscientização na América Latina e não apenas nela, feita, não
importa se pelos “inocentes” ou se pelos “espertos”, se vem constituindo,
naturalmente, em um obstáculo e não em uma ajuda ao processo de libertação.
desodorantes mil, assim como a possibilidade de mudar de roupa diariamente. Sem tais condições, que em
nada são intrínsecas ao ser de ninguém, ele seria tão malcheiroso quanto os favelados de seu exemplo.
A este respeito ver Erich Fromm, The heart of man.
Referindo-se aos “moralistas”, diz Niebuhr: “They do not recognize that when collective power, whether in
the form of imperialism or class domination, exploits wear-ness, it can never be dislodged unless power is
raised against it... Modern religious idealists usually follow in the make of social scientists in advocating
compromise and accommodation as the way to social justice”. 0p. cit, introdução, págs. XII e XIX.
Na verdade, na medida em que esta mistificação da conscientização transforma-a
numa panacéia, coloca-a, de um lado, a serviço das classes dominantes, mas, de
outro, termina por estimular a que muitos grupos sérios latino-americanos, sobretudo
de jovens, caiam no equivoco oposto ao do idealismo, que é o objetivismo
mecanicista.
Reagindo ao subjetivismo alienante que explica aquela distorção, os referidos grupos
terminam por negar o papel da consciência na transformaçâo da realidade, negando,
desta forma, a dialetização consciência-realidade. Já não percebem a diferença entre
consciência das necessidades de classe e consciência de classe. Entre ambas há uma
espécie de hiato dialético a ser resolvido. O subjetivismo tanto quanto o objetivismo
mecanicista são incapazes de fazê-la.
Estes grupos estão certos, sem dúvida, quando recusam, tanto quanto nós, que a
consciência possa ser modificada fora da práxis. É preciso, contudo, salientarmos que
a práxis, através da qual a consciência se transforma, não é pura ação, mas ação e
reflexão. Daí a unidade entre prática e teoria, em que ambas se vão constituindo,
fazendo-se e refazendo-se num movimento permanente no qual vamos da prática à
teoria e desta a uma nova prática.
A práxis teórica não é outra coisa senão a que realizamos, desde o contexto teórico,
ao tomar distância da práxis realizada ou realizando-se no contexto concreto, no
sentido de clarificá-la. Por isso mesmo é que a práxis teórica só é autêntica na
medida em que o movimento dialético entre ela e a subseqüente práxis, a ser
realizada no contexto concreto, não seja rompido. Daí que sejam ambas essas formas
de práxis momentos indicotomizáveis de um mesmo processo pelo qual conhecemos
em termos críticos. Isto significa, em outras palavras, que a reflexão só é verdadeira
quando nos remete, como salienta Sartre, ao concreto sobre o qual a exercemos.
Neste sentido é que a conscientização, associada ou não ao processo de alfabetização,
pouco importa, não pode ser uma blá-blá-blá alienante, mas um esforço crítico de
desvelamento da realidade, que envolve necessariamente um engajamento político.
Não há conscientização se, de sua prática, não resulta a ação conscientedos
oprimidos, como classe social explorada, na luta por sua libertação. Por outro lado,
ninguém conscientiza ninguém. O educador e o povo se conscientizam através do
movimento dialético entre a reflexão critica sobre a ação anterior e a subseqüente
ação no processo daquela luta.
Outra dimensão da mitificação da conscientização realizada pelos “inocentes” ou pelos
“espertos” é a tentativa de conversão da tão propalada educação para a libertação a
“For the purposes of the historian, ..., the student of micro -history, or of history ‘as it happened’ (and of the
present ‘as it happens’) as distinct from the general and rather abstract models of the historical
transformation of societies, class and the problem of class consciousness are inseparable. Class in the full
sense only comes into existence at the historical moment when classes begin to acquire consciousness of
themselves as such.” (Hobsbawm, E. J. “Class consciousness in History”, in Mesaros, lstevan (ed.), Aspects
of History and Class consciousness, Routledge and Kegan Paul, Londres pág 6.
A propósito das relações entre o contexto concreto e o contexto teórico, no ato de conhecer, ver Karel
Kosik, Dialética do Concreto, Ed. Paz e Terra, Rio, 1976
Jean Paul Sartre, Search for a Method, Vintage Books, Nova York.
A este propósito, ver Georg Lukacs, Historie et Conscience de Classe. Les Editions de Minuit, Paris,
1960.
um problema puramente metodológico, tomando-se os métodos como algo neutro,
assexuado. Desta forma se pretende esvaziar a ação educativa de seu conteúdo
político e a expressão “educação para a libertação” já não faz sentido.
Na verdade, na medida em que tal modalidade de educação se reduz a um conjunto
de métodos e de técnicas com os quais educandos e educadores olham a realidade
social – quando a olham – para simplesmente descrevê-la, esta educação é tão
domesticadora quanto outra qualquer. A educação libertadora não pode ser a que
busca libertar os educandos de quadros-negros para oferecer-lhes projetores. Pelo
contrário, é a que se propõe, como prática social, a contribuir para a libertação das
classes dominadas. Por isso mesmo, é uma educação política, tão política quanto a
que, servindo às classes dominantes, se proclama, contudo, neutra. Daí que uma tal
educação nâo possa ser posta em prática, em termos sistemáticos, antes da
transformação revolucionária da sociedade.
Seria realmente uma ingenuidade, que só os “inocentes” podem ter, esperar que as
classes dominantes pusessem em prática um tipo de educação que as desvelasse
mais do que as contradições em que se acham envolvidas já o fazem.
Todos esses são descobrimentos que um número cada vez maior de cristãos vem
fazendo na América Latina e que exigem deles, como afirmamos anteriormente, uma
tomada de posição – ou transformam sua “inocência” em “esperteza” e, assim,
assumem conscientemente a ideologia da dominação ou, pelo contrário, se engajam
na busca real da libertação dos oprimidos.
Dissemos antes que seu novo aprendizado com as classes dominadas, no caso em
que renunciem à sua adesão acrítica às classes dominantes, lhes fazia desafios
inéditos, cujas respostas demandavam deles que assumissem riscos até então
desconhecidos.
De fato, no processo deste novo aprendizado, cedo começam a perceber que,
enquanto exerciam formas de ação puramente paliativas, não apenas no setor da
assistência social, por exemplo, mas também no especificamente religioso,
participando, ardorosamente, de campanhas como “a família que reza unida
permanece unida”, eram exaltados por suas virtudes cristãs.
No momento, porém. em que, pela própria experiência, vão percebendo que a família
que reza unida precisa de casa, de trabalho livre, de pão, de roupa, de saúde, de
educação para seus filhos, de expressar-se e de expressar seu mundo, criando e
recriando, precisa de ser respeitada no seu corpo, na sua alma, na sua dignidade,
para permanecer unida não na dor apenas e na miséria, neste momento mesmo, ao
revelar sua percepção nova de tal realidade, passam a ter a sua própria fé posta em
parêntese por aqueles que, achando pouco o seu poder político, econômico ou
eclesiástico, pretendem ainda apoderar-se da consciência dos demais.
Na medida em que seu novo aprendizado os vai levando a uma cada vez mais clara
inteligência da dramática realidade do povo, associada a novas formas de ação já
menos assistencialistas, passam a ser vistos como figuras “diabólicas”, a serviço da
demonização internacional. Demonização que ameaça a “civilização ocidental e
cristã”, que de cristã pouca coisa realment e tem.
Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.
Assim, aprendem por meio da prática mesma que nunca tinham sido neutros nem
imparciais no tempo de sua “inocência”.
Neste momento, contudo, assustados, não suportando assumir o risco existencial que
o engajamento histórico exige, muitos voltam, “espertamente”, às ilusões idealistas.
Precisam, porém, racionalizar o seu retorno. Proclamam, então, a necessidade de
defender as massas populares, “incultas e incapazes”, para que não percam a sua
crença em Deus, “tão bonita, tão mansa, tão edificante”. Defendê-las da “maldade
subversiva de falsos cristãos que elogiam a Revolução Cultural chinesa e falam em
favor da Revolução cubana”.
Arregimentam-se na “defesa da fé”, quando, em verdade, se unem na defesa de seus
interesses de classe, subordinando aquela a estes interesses. Desta forma, têm de
insistir na neutralidade da Igreja, cuja tarefa fundamental deve ser, para eles, a de
fazer a conciliação dos inconciliáveis, através da estabilidade máxima possível da
realidade social. Assim, castram a dimensão profética da Igreja, cujo testemunho
passa a ser o do temor à mudança, o do temor à transformação radical do mundo
injusto, com medo de perder-se no “futuro incerto”.
Mas, ao temer perder-se no futuro incerto, ao pretender evitar o risco implícito no
futuro que deve ser construído e não recebido é que a Igreja realmente se perde. Daí
que não possa experimentar-se na unidade da denúncia e do anúncio. Denúncia da
realidade injusta; anúncio da realidade a ser criada com a transformação radical
daquela.
Desta forma, tanto quanto as classes sociais dominantes, às quais se atrela, não pode
ser utópica, profética, nem esperançosa. Ao privar-se de sua visão profética, sua
tendência é formalizar-se na ritualização burocrática em que a esperança, sem
relação com o futuro, é mera abstração alienada e alienante. Em lugar de ser um
estímulo ao caminhante é um convite à estabilidade. No fundo, esta é uma Igreja que
se proíbe de fazer a Páscoa de que fala. É uma Igreja “morrendo de frio”, sem
condições de responder aos anseios de uma juventude inquieta a quem já não é
possível falar uma linguagem medieval, pois que se encontra desafiada pela
dramaticidade de seu tempo. Juventude que, em parte, pelo menos, sabe muito bem
que o problema fundamental da América Latina não é a “preguiça do povo”, ou sua
“inferioridade” ou sua “falta de educação”, mas o imperialismo, não como abstração
ou um “slogan”, mas como uma realidade tangível, como uma presença invasora,
destruidora. Sem a superação desta contradição fundamental, as sociedades
dependentes latino-americanas poderão apenas modernizar-se.
Estão certos os teólogos latino-americanos que, engajando-se his-toricamente, cada
vez mais, com os oprimidos, defendem hoje uma teologia política da libertação e não
uma teologia do “desenvolvimen-to” modernizante. Estes teólogos, sim, podem
começar a responder, em certos aspectos, às inquietações de uma geração que opta
“From the beginning of modern times, hopes for something new from God have emigrated from the
Church and have been invested in revolution and rapid social change. It was most often reaction and
conservatis m that remained in the Church. Thus, the Christian Church became “religious”. That is, she
cultivated and apotheosized tradition. Her authority was sanctioned by what had been in force always and
everywhere from earliest times.” (Moltmann, Jürgen, Religion, Revolution and the Future, Charles
Scribner's Sons, Nova York, 1969, págs. 5-6.)
pela transformação revolucionária de sua sociedade e não pela conciliação dos
inconciliáveis.
Eles sabem muito bem que só os oprimidos, como classe social proibida de dizer sua
palavra, podem vir a ser utópicos, proféticos e esperançosos, na medida em que seu
futuronão é a mera repetição deformada de seu presente. Seu futuro é a
concretização de sua libertação, sem a qual não podem ser. Só eles podem denunciar
a “ordem” que os esmaga e, na práxis da transformação desta “ordem”, anunciar um
mundo novo a ser refeito constantemente.
Por isto é que sua esperança não é um convite à estabilidade, que não existe apenas
no tradicionalismo, mas também na “modernização” alienadora. Sua esperança é um
chamamento à “caminhada”, não a uma “caminhada” errante, de quem renuncia ou
foge, mas à “caminhada” de quem toma a história nas mãos, fazendo-a e nela
refazendo-se. Caminhada que é, em última análise, a sua Travessia necessária, na
qual têm de “morrer” enquanto classe oprimida para re-nascer como homens e
mulheres novos.
Esta Travessia, contudo, enfatizemos mais unia vez, não pode ser feita “dentro” de
sua consciência, mas na história. Ninguém faz a Travessia apenas na “interioridade”
de seu ser.
Há também, contudo, aqueles que, em número cada vez maior, sem renunciar às
suas posições cristãs, ou a elas renunciando, vão tornando-se mais e mais
comprometidos com a causa da libertação das classes dominadas.
Sua experiência lhes vem ensinando que ser cristão não significa necessariamente ser
reacionário, como ser revolucionário não implica em ser “demoníaco”. Ser
revolucionário significa estar contra a opressão, contra a exploração, em favor da
libertação das classes oprimidas, em termos concretos e não em termos idealistas.
Através de seu novo aprendizado perceberam finalmente que é pouco dizer que
homens e mulheres são pessoas humanas mas nada fazer, objetivamente, para que
existenciem sua condição de pessoa. Aprenderam que não é com obras
assistencialistas ou, como prefere Niebuhr, “humanitárias”, que as classes oprimidas
podem realmente autenticar-se como pessoas.
Ultrapassaram os primeiros embates que muitos de seus companheiros de Travessia
não resistiram, o que não quer dizer, porém, que todos cheguem a suportar as provas
mais duras que têm ainda pela frente. É que, se, em certo momento do processo, a
violência dos opressores se exercia quase exclusivamente sobre a classe operária,
poupando, o mais das vezes, os intelectuais comprometidos, pois que estes, em
última análise, fazem parte da mesma totalidade das classes dominantes, em outro,
aquela violência se faz indiscriminadamente. É como se a violência se
“democratizasse”...
Na verdade só os oprimidos podem conceber um futuro completamente diferente dc seu presente, na
medida em que alcançam a consciência de classe dominada. Os opressores, enquanto classe dominante, não
podem conceber o futuro a não ser como preservação de seu presente de opressores. Assim, enquanto o
futuro dos primeiros está na transformação revolucionária da sociedade, sem a qual não haverá sua
libertação, o futuro dos segundos está na pura modernização da sociedade, com a qual podem ou esperam
manter o domínio de classe.
Este instante provoca de um lado a retirada de alguns, o seu silêncio, a sua
acomodação; de outro, porém, novas adesões.
Uma das diferenças fundamentais, contudo, entre os que partem e os que ficam, está
em que os últimos assumem a existência como a tensão dramática entre o passado e
o futuro, entre a morte e a vida, entre ficar e partir, entre criar e não criar, entre
dizer a palavra e o silêncio castrador, entre a esperança e o desespero, entre ser e
não ser.
Como seres humanos, de fato, é uma ilusão pensar que podemos escapar a esta
tensão dramática. Não podemos submergir na dramaticidade de nossa própria forma
de estar sendo no mundo, o que significaria a nossa perda na alienação da
quotidianeidade. Na verdade, se me perco na quotidianeidade, perdendo, ao mesmo
tempo, a percepção da dramática significação de minha existência, minha tendência é
tornar-me fatalista ou cínico. Por outro lado, se busco emergir da quotidianeidade, no
sentido de assumir a dramaticidade de minha existência, mas não me faço
comprometido historicamente, não tenho outro caminho senão cair num
intelectualismo vazio, igualmente alienado. Assim, é possível que fale da existência
como desespero ou impossibilidade.
Desta forma, não tenho outra maneira de superar a quotidianeidade alienante senão
através de minha práxis histórica em si mesma social, e não individual. Somente na
medida em que assumo totalmente minha responsabilidade no jogo desta tensão
dramática é que me faço uma presença consciente no mundo. Como tal, não posso
aceitar ser mero espectador, mas, pelo contrário, devo buscar meu lugar, o mais
humilde, o mais mínimo que seja, no processo de transformação do mundo. Assim,
então, a dramática tensão entre passado e futuro, entre a morte e a vida, entre a
esperança e o desespero, entre ser e não ser, já não existe como uma espécie de
beco sem saída, mas é percebida como realmente ela é: um permanente desafio ao
qual devo responder. E a resposta não pode ser outra senão o compromisso com a
libertação das classes oprimidas, através da transformação revolucionária da
sociedade.
A revolução, contudo, não esgota a dramática tensào da nossa existência. Ela resolve
as contradições antagônicas que fazem a tensão mais dramática. Mas, precisamente
porque participa da tensão, ela é tão permanente quanto aquela.
Dentro da história, é impossível pensar na instauração de um reino de paz
imperturbável. A história é devenir, é acontecimento humano.
Mas, em lugar de sentir-me desapontado e assustado na descoberta crítica da tensão
em que me acho como um ser humano, descubro nela, pelo contrário, a alegria de
ser.
Por outro lado, contudo, não posso reduzir a tensão dramática à minha experiência
existencial, apenas. Naturalmente, não posso negar a singularidade de minha
existência, mas isto não significa que minha existênc ia pessoal tenha uma significação
absoluta em si mesma, isolada de outras existências. Pelo contrário, é na
intersubjetividade, mediatizada pela objetividade, que minha existência ganha
sentido.
Ver Karel Kosik, op.cit.
O “eu existo” não precede ao “nós existimos”, se constitui nele. A concepção
individualista burguesa da existência não é suficiente para retirar dela sua base social
e histórica. Mulheres e homens, como seres humanos, são produtores de existência e
o ato de produzi-la é social e histórico, ainda quando tenha a sua dimensão pessoal.
A existência não é desespero, mas risco. Não posso ser se não existo perigosamente.
Mas, se a existência é histórica, o risco existencial não é uma categoria abstrata,
senão histórica também. Isto significa que, se existir é arriscar-se, onde quer que a
existência se dê, as formas de arriscar-se bem como a eficiência no arriscar-se não
podem ser as mesmas em diferentes espaços e tempos.
Nossa realidade histórico-social condiciona a nossa forma de arriscar-nos. Daí que o
testemunho não possa ser importado. Pretender a universalidade dó conteúdo e da
forma do risco existencial é uma ilusão idealista que não pode ser aceita por ninguém
que pense dialeticamente.
Uma tal forma de pensar – a dialética – se constitui, por outro lado, como um dos
fundamentais desafios aos que fizeram a nova opção e a quem estamos discutindo
nesta parte de nosso trabalho. É que sua formação pequeno-burguesa, individualista,
intelectualista, que dicotomiza teoria de prática, transcendência de mundanidade,
trabalho intelectual de trabalho manual, nem sempre é superada, facilmente, mesmo
entre aqueles que se experimentam com o povo.
Sua marca pequeno-burguesa se expressa constantemente através de atitudes e de
práticas em que as classes dominadas aparecem como puros objetos de seu
“revolucionarismo impaciente”.
No seu novo aprendizado com o povo não há outro caminho senão a “travessia”
“entre” a subjetividade e a objetividade e, ao fazê-lo, oscilam muitas vezes entre o
subjetivismo idealista e o objetivismo mecanicista, entre o intelectualismo verboso e o
ativismo que recusam a reflexão séria. Daí que tanto possam reativar as matrizes
idealistas, como possam cair no “revolucionarismo impaciente”, antes referido.
Ambas estas posturas, como afirmamos no início deste estudo, são obstáculos ao
autêntico processo de libertação. Ambas terminam por negar o verdadeiro papel da
consciência de classe na transformação revolucionária.
A análise mais detida deste fato não é, porém, o objetivo deste trabalho.
Ao procurarmos analisar agora, de maneira mais detida, o papel das Igrejas na
América Latina, em face de uma de suas tarefas, a da educação, teremos de voltar a
algumas das afirmações feitas no corpo deste ensaio. Em primeiro lugar, à
impossibilidade de sua neutralidade política. Por isso mesmo, se torna inviável discutir
esse papel abstratamente, uma vez que ele, como a concepção da educação, seus
objetivos, métodos, conteúdo, tudo está condicionado pela opção resultante daquela
impossibilidade. Seria incorrer na mesma ilusão idealista que criticamos se
pretendêssemos realizar tal análise fora da realidade histórica, tomando a educação e
seus objetivos como idéias puras, imutáveis, essências mais acima da existência
concreta do mundo mesmo.
Não escapam a este condicionamento, de um lado, a própria capacitação teológica
dos quadros da Igreja militante, de outro, a educação geral realizada através das
Igrejas.
Numa sociedade de classes, são as elites do poder, necessariamente, as que definem
a educação e, consequentemente, seus objetivos. E estes objetivos não podem ser,
obviamente, endereçados contra os seus interesses. Como dissemos anteriormente,
seria uma ingenuidade primária esperar de tais elites que pusessem em prática, ou
que consentissem ser posta em prática, em caráter geral e sitemático, uma educação
que, desafiando o povo, lhe permitisse perceber a “raison d’être” da realidade social.
O máximo que tais elites permitem é a expressão verbal de tal educação e, vez ou
outra, algumas experiências, logo paralisadas, se revelam algum perigo à
estabilidade.
Por isso mesmo não nos surpreenderíamos se o Conselho Episcopal Latino-Americano
– Celan – que tem falado sempre em seus documentos oficiais de educação
libertadora, viesse a sofrer restrições por parte das elites do poder, mediatizadas por
aquela Igreja antiprofética de que falamos anteriormente. Esta Igreja que “morre de
frio” no seio morno da burguesia, não pode olhar com bons olhos e ouvir com bons
ouvidos a defesa das idéias e de práticas consideradas pelas elites como “diabólicas”.
A nossa tarefa se simplificaria se tivéssemos de nos perguntar qual deveria ser o
papel das Igrejas na América Latina em face da educação se esta pergunta
pressupusesse a coerência das Igrejas com relação ao Evangelho.
A verdade, contudo, não é esta e não podemos pensar no vazio. É inviável falar
objetivamente de um papel unificado das Igrejas latino-americanas em face da
educação. Há papéis distintos, em função da linha política, clara ou oculta ou
disfarçada, que diferentes Igrejas vêm assumindo historicamente na América Latina.
Um papel, por exemplo, que corresponde a uma Igreja tradicionalista, que não
chegou ainda a desvencilhar-se de suas marcas intensamente coloniais. Missionária
no pior sentido da palavra, “conquistadora” de almas, esta Igreja, dicotomizando
mundanidade de transcendência, toma aquela como a “sujeira” na qual os seres
humanos devem pagar por seus pecados. Por isso mesmo, quanto mais sofram tanto
mais se purificamte, ássim, alcançam o céu, a paz eterna. O trabalho não é a ação
dos homens e das mulheres sobre o mundo, refazendo-o e fazendo-se nele, mas a
“pena que pagam por ser homens” e mulheres.
Esta linha tradicionalista, não importa se protestante ou católico-romana, se constitui
no que o sociólogo suíço Christian Lalive chama de “refúgio das massas”.
É que uma tal postura em face do mundo, em face da vida, satisfaz à impotência da
consciência fatalista dos oprimidos, em certo momento de sua experiência histórica.
Aí encontram eles uma espécie de bálsamo para o seu cansaço existencial.
Por isto, quanto mais imersas na cultura do silêncio estejam as massas populares,
quanto maior for a violência das classes apressoras, tanto mais tendem aquelas
massas a refugiar-se em tais Igrejas.
Mergulhadas na cultura do silêncio, onde a única voz é a das classes dominantes,
encontram nesta Igreja uma espécie de “útero” no qual se “defendem” da
agressividade da sociedade. Por outro lado, ao desprezarem o mundo, como mundo
do pecado, do vício, da impureza, em certo sentido “se vingam” de seus opressores,
Christian Lalive, El Refugio de Ias massas. Estudio Sociologico dei Pnotestantisnro Chileno, Editorial dei
Pacifiço, Santiago, 1968.
que são os “donos” deste mundo. É como se dissessem aos opressores: “Os senhores
são poderosos, mas possuem um mundo feio, que nós recusamos”.
Proibidas de dizer sua palavra, enquanto classe social subordinada, ganham, no
“refúgio”, a ilusão de que falam, na expressão de suas súplicas de salvação.
Nada disto, contudo, resolve sua situação concreta de oprimidos. A sua catarse, em
última análise, as aliena mais, na medida em que se faz em antagonismo com o
mundo e não com o sistema sócio -econômico que estraga o mundo.
Assim, téndo o mundo em si mesmo como antagônico, tentam o impossível, que é
renunciar à mediação dele na sua Travessia.
Desta forma, querem chegar à transcendência sem passar pela mundanidade;
querem a meta-história, sem experimentar-se na história; querem a salvação sem a
libertação.
A dor que sofrem no processo de sua dominação as faz aceitar esta anestesia
histórica, sob cujo efeito buscam fortalecer-se para lutar contra o demônio e o
pecado, deixando, porém, em paz, as causas reais de sua opressão. Assim não
podem vislumbrar, mais além das situações concretas, o “inédito viável”– o futuro
como tarefa de liber-tação que têm de criar.
Esta forma tradicional de Igreja corresponde às sociedades “fechadas”, com um
mínimo de mercado interno, exportadoras de matérias-primas; sociedades
preponderantemente agrícolas, em que a cultura do silêncio é a conotação
fundamental. Na mesma medida em que estas estruturas sociais arcaicas persistem
em pleno processo de modernização de tais sociedades, a Igreja tradicionalista
igualmente persiste nele. Mas seria um equívoco pensar que a sua presença na
transição em que entra esta ou aquela sociedade se verificasse apenas nas áreas
intocadas pela modernização. Na verdade, nos próprios centro urbanos,
transformando-se sob o impacto da industrialização, constata-se facilmente a força de
tal tradicionalismo religioso. É que somente a mudança qualitativa da consciência
popular pode superar definitivamente a necessidade da “Igreja como refúgio das
massas”. E esta mudança qualitativa não se opera, como dissemos anteriormente,
nem “dentro” da consciência por ela mesma, nem automática nem mecanicamente.
Por outro lado, a modernização tecnológica não traz consigo, necessariamente, a
criticização das massas populares, uma vez que, não sendo neutra, depende da
ideologia que a ilumina.
Por tudo isto e por muito mais que a extensão deste trabalho não permite analisar, a
linha tradicionalista a que nos referimos se constitui como uma aliada indiscutível das
classes dominantes, não importa que alguns dos que a lideram possam estar
inconscientes disto.
O papel que tais Igrejas podem desempenhar e vêm desempenando no campo da
educação tem, portanto, de estar condicionado por sua visão do mundo, da religião,
dos seres humanos e de seu “destino”. Sua concepção da educação, que se concretiza
Ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.
Ver Muniz de Souza, Beatriz, A Experiência da Salvação, Pentecostais em São Paulo, Editora Duas
Cidades, São Paulo, 1969.
em uma prática correspondente, não pode deixar de ser quietista, alierfada e
alienante.
Somente os que ainda se encontram “inocentemente” nesta pers-pectiva e não
“espertamente” podem superar o seu equivoco, através de sua práxis, para,
comprometendo-se com as classes dominadas, em forma diferente, fazem-se
realmente proféticos.
Evoluindo desta perspectiva tradicionalista, uma nova posição vem sendo assumida
por outras Igrejas, no quadro histórico da América Latina.
Esta nova posição comeca a constituir-se na referida transição que a América Latina
vem experimentando e em que se verifica a superação de estruturas tradicionais por
estruturas modernizando-se. As massas populares, antes preponderantemente
“imersas” no processo histórico, iniciam sua “emersão” como resposta necessária ao
processo de industrialização. A sociedade, inserida em tal passagem, começa a
mudar. Desafios novos se apresentam às classes dominantes, exigindo delas
respostas diferentes.
Os interesses imperialistas, que em si condicionam a própria transição da sociedade,
se fazem mais e mais agressivos, expressando-se através de variadas formas de
penetração e'de controle da sociedade dependente. Em certo momento deste período,
a ênfase no processo da industrialização provoca a configuração de uma “ideologia do
desenvolvimento”, de caráter nacionalista, que, entre outras teses, defende o pacto
entre as “burguesias nacionais” e o proletariado emergente.
Os economistas latino-americanos são os primeiros a lançar-se à análise de tal
processo, a quem se juntam sociólogos e alguns educadores. A noção e a prática do
planejamento se instauram. A Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL –,
de assessoria à América Latina, exerce uma influência decisiva em tal fase, não
apenas através de suas missões técnicas, mas também através do esforço de
explicitação de suas teses em torno da política do “desenvolvimento”. À CEPAL se
vem juntar, mais tarde, a contribuição do Instituto Latino-Americano de Planejamento
Econômico e Social – ILPES – como aquela, um organismo da ONU, que tem, como
uma de suas tarefas, a capacitação de economistas para todo o continente.
Nada disto, porém, se deu nem poderia dar-se no ar. Mas, pelo contrário, dentro da
história mesma que a América Latina, mais inten-samente em uma sociedade, menos
em outra, vivia.
Seria impossível compreender todo este movimento com as diferentes perspectivas
que se expressam nessa época, em face de “atraso da América Latina”, como se
resultasse do acaso ou de meros caprichos de alguns homens.
Os já referidos interesses econômicos imperialistas, a necessidade de expansão
de.seu mercado, por exemplo, forçavam as próprias elites nacionais, no fundo, quase
sempre, puras metásteses das externas, a buscar caminhos de superação das
estruturas arcaicas, sem o que aqueles interesses se frustariam.
O importante, porém, do ponto de vista do imperialismo e de seus aliados nacionais,
era que tal processo reformista, chamado sloganizadamente de desenvolvimento, não
Pauto Freire, Educação como Prática da Liberdade.
afetasse os pontos centrais das relações entre a snciedade matriz e as sociedades
dependentes. No fundo, “desenvolvimento” na dependência. Desta forma,
obviamente, o ponto de decisão política, econômica, cultural da transformação da
sociedade dependente deveria permanecer na sociedade matriz, a não ser em certos
aspectos que, delegados a ela, não alterariam em essência seu estado de sociedade
subordinada.
Por isso mesmo é que as sociedades latino-americanas, com exceção de Cuba, depois
de sua revolução, vêm modernizando-se e não desenvolvendo-se, no sentido real da
palavra.
O desenvolvimento da América Latina só se dará na medida em que se resolva sua
contradição fundamental ou principal, que configura sua dependência. Isto significará
que o ponto de decisão de sua transformação se encontrará dentro de suas
sociedades, mas, ao mesmo tempo, fora das mãos de uma elite burguesa, superposta
às massas populares oprimidas. É inviável o desenvolvimento integral numa
sociedade de classes. Neste sentido é que desenvolvimento é libertaçao, de um lado,
da sociedade dependente como um todo em face do imperialismo; de outro, das
classes sociais oprimidas em relação às classes opressoras.
De qualquer forma, porém, o processo de expansão imperialista engendra fatos
inéditos, de caráter político e social. A transição que a sociedade dependente sofre
implica na presença contraditória de um “proletariado modernizaqdo-se, ao lado de
um proletariado tradicional; de uma pequena burguesia técnico-profissional, ao lado
de uma classe média tradicional”. De uma Igreja tradicional, ao lado de uma Igreja
modernizando-se; de uma educação livresca, “florida”, ao lado de uma educação
técnico-profissional que começa a ser ensaiada, como exigência necessária da
industrialização.
É que a passagem que faz a sociedade de uma etapa à outra não se dá
automaticamente, como pensam os mecanicistas. Não há fronteiras geograficamente
rígidas entre tais fases, daí que coexistam dímensões de ambas na Transição.
A presença do proletariado modernizando-se, exercitando-se numa nova experiência
histórica – a da Transição – gera o surgimento do populismo, como um novo estilo de
ação política. Sua liderança joga o papel de mediadora entre as classes populares
“emergindo” e as classes dominantes
Não é possível, por isto mesmo, pensar em populismo se as massas populares não
fizeram ainda a sua “emersão”. Daí que, nas sociedades em Transição, ele não afete
as áreas latifundiárias pelo fato de que, em tais circunstâncias, as massas
camponesas se acham “imersas”.
Por outro lado, no quadro histórico em que o populismo se constitui, sua tendência é
a de se caracterizar como um tipo de ação “assistencialista”, de que decorre o seu
caráter manipulador. É que as mas-sas populares “emergem” no processo histórico
intensamente condicionadas por toda a sua experiência na cultura do silêncio.
Ver Cardoso, Fernando Henrique, Politique et développement dans les sociétés dépendentes, Edition
Anthropos, Paris, 1971.
Ver Weffort, Francisco, Classes Populares e Política (Contribuição ao Estudo do Populismo),
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1968.
Emergem, obviamente, sem consciência de classe, pois que não podiam tê-la no
estado anterior, o de sua imersão. Aparecem tão ambíguas quanto ambíguo é o
populismo que a elas responde. De um lado, reivindicam; de outro, aceitam as
fórmulas assistencialistas e ma -nipuladoras.
É por esta razão também que as Igrejas tradicionalistas perduram, na Transição,
inclusive nos centros urbanos, modernizando-se. E a tendência de tais Igrejas é
prestigiar-se desde que, esgotada a etapa do populismo, em certas sociedades latinoamericanas,
elas entrem em nova transição, caracterizada por regimes militares
violentos.
“Reativando” nas massas populares sua velha forma de ser, constituída na cultura do
silêncio, a repressão as leva à Igreja como “refugio”. Esta Igreja, mais do que existe
ao lado das que se vão modernizando, segundo já vimos', também se moderniza, em
certos aspectos, com o que se torna mais eficiente no seu tradicionalismo.
É importante observar, dentro da Transição, que, assim como o processo de
modernização da sociedade dependente não traduz alterações fundamentais em sua
relação com a sociedade matriz, e a emersão das massas não quer dizer sua
consciência critica ou de classe, a linha modernizante das igrejas não significa seu
compromisso histórico com as classes oprimidas, no sentido de sua real libertação.
Desafiada pela eficiência que começa a ser exigida peÌas sociedades que vão
superando suas estruturas arcaicas, a Igreja modernizante aperfeiçoa sua burocracia
para ser mais eficaz, quer na sua atividade social-assistencial quer na sua ação
pastoral. Interessa-se, assim, por substituir as formas empíricas antes usadas no seu
quefazer assisten-cial, por procedimentos técnicos. Seus antigos “Centros de
Caridade”, orientados por leigos – na Igreja Católica, por Filhas de Maria – pas-sam a
chamar-se “Centros de Comunidade”, sob a direção de assisten-tes sociais. Os
homens e as mulheres que antes eram João, Carolina, Joaquim, Madalena, sâo agora
números em fichas verdes, amarelas e azuis. Os chamados meios de comunicação
com as massas, no fundo, meios de “comunicados” às massas, são uma atração
irresistível. Mas o que há de condenável na Igreja “moderna” e modernizante não é
propriamente a sua preocupação, de resto importante, com o aperfeiçoamento de
seus instrumentos de trabalho, mas a sua opção política, inegável, ainda que muitas
vezes escondida, que se encontra condicio-nando a sua própria modernização. Tanto
quanto as Igrejas tradicionalistas, de que ela é uma versão nova, o seu compromisso
real não é com as classes sociais dominadas, mas com as elites do poder. Daí que
defenda as reformas estruturais e não a transformação radical das estruturas; daí que
fale em “humanização do capitalismo” e não em sua total supressão.
Enquanto as Igrejas tradicionalistas alienam as classes sociais dominadas, revelandolhe
o mundo como seu antagônico, a Igreja modernizante as aliena, em forma
diferente, ao apoiar os reformismos que preservam o “status quo”.
Reduzindo expressões como “humanismo”, “humanização”, “promoção humana”, a
categorias abstratas, as esvazia de sua real significação, tornando-se assim um bláblá-
blá, que só não é inoperante porque ajuda as forças reacionárias. Na verdade,
não há humanização sem libertação, assim como não há libertação sem a
transformação revolucionária da sociedade de classes, em que a humanização é
inviável.
Em tal sociedade, a libertação é o “inédito viável” das classes dominadas. Sua
concretização, porém, só se dá na ultrapassagem daquela sociedade e não na simples
modernização de suas estruturas.
Na medida em que a Igreja modernizante não vai mais além das mudanças
periféricas em tal sociedade, advogando medidas paliativas, de caráter neocapitalista,
a sua audiência não pode ser outra senão a dos já referidos “inocentes” ou
“espertos”.
A juventude que se acha desafiada pela realidade dramática da América Latina, desde
que não seja “inocente” ou “esperta”, não pode aceitar o convite que lhe faz a Igreja
modernizante para encarnar posições conservadoras, que são igualmente as
reformistas. Não apenas recusa este chamamento mas até, provocada por ele,
assume atitudes nem sempre válidas, como, por exemplo, a postura objetivista que
analisamos noutra parte deste trabalho.
Na verdade, ao assumir posições conservadoras, recusadas por aquela juventude,
esta Igreja não contradiz seu “modernismo”. É que a modernização que estamos
analisando é eminentemente conservadora, na medida mesma em que reforma para
melhor preservar o “status que”. Neste sentido, a Igreja modernizante, conservadora,
“fica”, na aparência de que “anda” ou “caminha”; “estabiliza-se”, dando a impressão
de que “marcha”. Morre porque recusa morrer.
A Igreja modernizante diria hoje, de novo, ao Cristo: “Por que, Mestre, partir, se tudo
aqui é tão belo, tão bom!”
A sua linguagem é uma linguagem que esconde em lugar de iluminar. Em face da
situação concreta de opressão, numa sociedade de classes, fala de “pobres” ou de
“menos favorecidos” e não de classes oprimidas.
Pondo no mesmo nível a alienação das classes sociais dominantes e a das classes
oprimidas, pretende desconhecer a contradição antagônica entre elas, que resulta do
próprio sistema que as cria. Se o sistema aliena umas e outras, as aliena, contudo,
em forma diferente.
As primeiras se alienam enquanto, transformando o ser no falso ter, se exacerbam no
poder e já não o são autenticamente; as segundas, porque, proibidas de ser, são
quasexoisas. Engendrando o trabalho como mercadoria o sistema cria aqueles que
compram e aqueles que vendem a força do trabalho. O equívoco dos inocentes e a
esperteza dos espertos está em afirmar que a superação de tal contradição é uma
questão de consciência moral.
Ao proibirem, determinadas pele próprio sistema, que as classes dominadas sejam, as
classes dominantes não só deixam de ser, mas também se acham impossibilitadas,
como tais, de promover os meios pelos quais se poderia superar sua alienação bem
Ao não perceberem o problema em forma dialética, os “inocentes” podem conside-rar a análise que
fazemos como algo maniqueista. Na verdade, porém, de um ponto de vista dialético, a questão não se reduz
a uma tão simplista divisão dos seres humanos, entre bons e maus. O que a análise critica revela, por um
lado, é que o sistema capitalista, em si, é o que gera, necessariamente, tal estado de coisas; de outro, é que é
inviável transformá-io convidando as classes dominantes a tomar consciência de seu “erro”. Na verdade, do
ponto de vista de seus interesses de classe, elas estão certas e isto é outro ponto que os ingênuos não podem
perceber. E não podem porque sua tendência irre-freável é pensar a-historicamente.
como a das classes oprimidas. Por isso mesmo, somente estas, historicamente, estão
chamadas a tal quefazer.
As outras, enquanto classes dominantes, não podem fazê-la. O que fazem – na sua
limitação histórica – é reformar e modernizar o sistema (em função de novas
exigências que a “inteligência” do próprio sistema percebe) no sentido de preservá-lo,
do que resulta a alienação de todos.
Dentro das condições concretas em que a Igreja modernizante atua, a sua concepção
da educação, dos objetivos desta, como de sua prática, tem de compor um todo
coerente com as linhas gerais de sua política. Daí que, ainda quando fale em
educação para a libertação, tal educação esteja condicionada por sua visão da
libertação como um quefazer individual que deve dar-se, sobretudo, no câmbio das
consciências e não através da práxis social e histórica dos seres humanos. Sua
ênfase, por isto mesmo, recai sobre os métodos, tomados como instrumentos
neutros. A educação libertadora se reduz, finalmente, para a Igreja modernizante, a
libertar os educandos do quadro-negro, das aulas mais estáticas, dos conteúdos mais
“livrescos”, oferecendo-lhes projetores e outras ajudas audiovisuais, aulas mais
dinâmicas e ensino técnico-profissional.
Finalmente, tão velha quanto o cristianismo mesmo, sem ser tradicional, tão nova
quanto ele, sem ser modernizante, vem afirmando-se, cada vez mais, na América
Latina, ainda que não como um todo coerente, uma outra linha de Igreja – a
profética. Combatida pelas Igrejas tradicionais e pela modernizante, tanto quanto,
obviamente, pelas elites do poder, a linha profética, utópica e esperançosa, recusando
os paliativos assistencialistas, os reformismos amaciadores, se compromete com as
classes sociais dominadas para a transformação radical da sociedade.
Rejeitanto toda forma estática de pensar, a linha profética sabe muito bem, em
oposição às Igrejas anteriormente analisadas que, para ser, tem de estar sendo.
Precisamente porque assume um pensar crítico, não se concebe neutra nem
tampouco esconde sua opção. Por isto, também, não dicotomiza mundanidade de
transcendência nem salvação de libertação. Sabe, igualmente, que não há um “eu
sou”, um “eu sei”, um “eu me liberto”, um “eu me salvo”; como não há um “eu te dou
conhecimento”, um “eu te liberto”, um “eu te salvo”, mas, pelo contrário, um “nós
somos”, um “nós sabemos”, um “nós nos liberta-mos”, um ”nós nos salvamos”.
A linha profética, tal qual começa a esboçar-se, não pode, por sua vez, ser
compreendida a não ser como uma expressão da realidade concreta da América
Latina, dramática e desafiadora. Na verdade, ela principia a emergir quando as
sociedades latino-americanas, em transição, umas mais que outras, passam a ter
suas contradições cada vez mais desveladas. Este é o momento em que se clarificam,
também, de um lado, a revolução como o caminho de libertação das classes sociais
oprimidas; de outro, o golpe militar imperialistamente inspirado, como opção
reacionária.
Os cristãos que hoje, na América Latina, participam desta linha, ainda quando,
algumas vezes, divergentes entre si, sobretudo do ponto de vista de como atuar, são,
de modo geral, os que, renunciando à “inocência” referida na primeira parte deste
trabalho, aderiram às classes oprimidas e permanecem nesta adesão.
Foi preciso que eles, protestantes ou católicos, – e do ponto de vista profético esta
diferença não chega a ter signif icação – eclesiásticos ou leigos, se experimentassem
duramente na transição desafiadora para que começassem a transitar também de sua
visão idealista para uma visão dialética da realidade. Em tal processo, aprenderam,
não apenas de sua práxis com o povo, mas também do exemplo de desprendimento e
de coragem de boa parte da juventude.
Perceberam assim, claramente, que a realidade, que é processo e não um fato dado,
se move coiitraditoriamente. Entenderam que os conflitos sociais não são.em si, como
se fossem categorias metafísicas, mas, pelo contrário, são a expressão histórica das
próprias contradi-ções em confrontação. Daí que toda tentativa de solução dos
conflitos que não tenha em vista a superação da contradição que os gera, de um lado,
apenas os abafa; de outro, serve às classes dominantes.
Demandando a posição profética uma análise crítica das estruturas sociais em que se
dão os conflitos, exige conseqüêntemente dos que a seguem o uso das ciências
político-sociais que, não sendo neutras, implicam na opção ideológica de quem as
emprega.
Não significando também a perspectiva profética, utópica e esperançosa, a atitude de
quem, fora do mundo concreto, fala de um mundo de sonhos impossíveis, requer,
naturalmente, o conhecimento científico do mundo concreto. É que, ser profético,
utópico e esperan-çoso, segundo já afirmamos, é denunciar e anunciar, através da
práxis real. Daí o conhecimento cientifico da realidade como condição necessária à
eficiência profética.
Não podemos denunciar a realidade nem anunciar sua radical transformação, de que
resultará outra realidade, na qual nascerão o novo homem e a nova mulher, se não
nos damos, através da práxis, ao conhecimento da realidade. Mas, por outro lado,
não podemos denunciar e anunciar sem as classes sociais dominadas, isto é, não
podemos prescrever-lhes nossa denúncia e nosso anúncio. A posição profética não é
pequeno-burguesa. Por isto mesmo ela sabe muito bem que a autenticidade da
denúncia e do anúncio, como processo permanente, só alcança seu ponto máximo
quando as classes dominadas, através de sua práxis, se fazem também proféticas,
utópicas e esperançosas, por-tanto revolucionárias.
A sociedade que se experimenta numa revolução permanente não pode prescindir da
permanência da visão profética, utópica e esperançosa de seu povo, sem a qual se
estagnará e já não será revolucionária.
Da mesma forma, nenhuma Igreja poderá ser realmente profética enquanto seja
“refúgio das massas” ou agência de modernização e de conservantismo.
A Igreja profética não “refugia” as massas populares oprimidas, alienando-as mais
ainda, com discursos falsamente denunciantes, porque simplesmente blá-blá-blantes.
Convida-as, pelo contrário, a um novo Êxodo.
A Igreja profética não é tampouco a que, modernizando-se, conserva, “estabiliza-se”,
adapta-se. Cristo não foi conservador. A Igreja profética, tal qual Ele, tem de ser
andarilha, viageira constante, morrendo sempre e sempre renascendo. Para ser, tem
de estar sendo. Por isto mesmo é que não há profetismo sem a assunção da
existência como a tensão dramática entre passado e futuro, entre ficar e partir, entre
dizer a palavra e o silêncio castrador, entre ser e não ser, à qual nos referimos antes.
Não há profetismo sem risco.
No clima histórico, intensamente desafiador, da América Latina, em que se vem
gestando, na práxis, esta atitude profética em muitos cristãos, se gesta igual e
necessariamente uma fecunda reflexão teológica. A teologia do chamado
desenvolvimento cede lugar à teologia da libertação, profética, utópica, esperançosa,
não importa que ainda não tão sistematizada.
Sua temática não pode ser outra senão a que emerge das condições objetivas das
sociedades dependentes, exploradas, invadidas. A que emerge da necessidade da
superação real das contradições que explicam tal dependência. A que vem do
desespero das classes sociais oprimidas. Enquanto profética, a teologia da libertação
não pode ser a da conciliação entre os inconciliáveis.
Em tais circunstâncias históricas, seria inviável uma teologia que pretendesse debater
a “secularização”, no fundo, uma forma moderna de “sacralização”que procurasse
entreter-nos com a “morte de Deus”, “que em muchos puntos revela una tendencia
acrítica de pura adaptación del hombre ‘un dimensionalizado’ y despolitizado de ias
sociedades opulentas”, como enfatiza Hugo Assmann, em seu recente e excelente
livro.
Por outro lado, ainda que aparentemente fugindo a nosso tema específico, parece-nos
que uma tal atitude profética em face do mundo, da História, não deve ser tomada
como exclusiva, nem da América Latina, nem tampouco das demais áreas chamadas
de Terceiro Mundo Esta atitude profética não é exotismo de “subdesenvolvidos”.
Primeiro, porque a posição original cristã é mesmo profética, qualquer que seja o
espaço e o tempo em que os cristãos se achem. O testemunho profético, por ser
histórico, é que se traduz de forma distinta, em tempos e espaços distintos. Segundo,
porque o próprio conceito de Tercei-ro Mundo é ideológico e político e não geográfico.
O chamado Primeiro Mundo tem, dentro de si e em contradição consigo, o seu
Terceiro Mundo, como este tem, dentro de si, o seu Primeiro, representado na
ideologia da dominação e no poder das classes dominantes.
O Terceiro Mundo, em última análise, é o mundo do silêncio, da opressão, da
dependência, da exploração, da violência exercida pelas classes dominantes sobre as
classes oprimidas.
Os europeus, de sociedades tecnologizadas, e os norte-americanos não têm
necessidade de vir à América Latina para tornar-se proféticos. Basta buscar a periferia
de suas grandes cidades, sem “inocência” ou “esperteza”, e ai encontrarão suficiente
estímulo para repensar-se. Encontrarão, em face deles, uma das expressões
particulares de seu Terceiro Mundo. Assim, então, podem compreender a inquietação
com que se traduz a posição profética na América Latina.
Por tudo isto, o papel educativo de uma Igreja profética na América Latina tem de ser
totalmente diferente do das Igrejas antes analisadas.
Naturalmente, numa linha profética, a educação se instauraria como método de ação
transformadora. Como práxis política a serviço da permanente libertação dos seres
Não há sociedades mais “sacrais” do que as sociedades burguesas. Reagem asperamente à mais mínima
tentativa de ruptura com seus padrões, considerados universais, eternos e perfeitos. Infelizmente não há neste
ensaio lugar para uma análise detida deste curíter sacral das chamadas sociedades escularizadas.
Opresión – Liberación, DesaJìo a los Cristianos, Tierra Nueva, Montevidéu, l97I.
humanos, que não se dá, repitamos, nas suas consciências apenas, mas na radical
modificação das estruturas em cujo processo se transformam as consciências.
Do ponto de vista profétic o, não importa qual seja o campo específico em que se dê a
educação, ela é sempre um esforço de clarificação do concreto, ao qual educadoreseducandos
e educandos-educadores devem encontrar-se ligados através de sua
presença atuan-te. É sempre prática desmitificadora que, ao desvelar a realidade da
consciência, ajuda o desvelamento da consciência da realidade.
Ao concluir este trabalho, podemos voltar à afirmação óbvia com a qual o iniciamos:
não é possível discutir as Igrejas, a educação, como o papel daquelas com relação a
esta, a não ser historicamente. E historicamente é que teremos de acompanhar as
idas e vindas do movimento profético na América Latina.
Prefácio à edição argentina de
A BLACK THEOLOGY OF LIBERATION
de James Cone
Genebra – 1972
Há livros que, iniciada a sua leitura, nos desafiam e fascinam, a tal ponto que se nos
torna difícil deixá-los antes de chegar, com seu autor, às suas últimas palavras. A
Black Theology of Liberation é um desses livros.
Recebi-o em Genebra, em 1970, quando recém-aparecia nos Estados Unidos, de um
jovem amigo, aluno de Cone, em Nova York, e que havia participado regularmente do
seminário que coordenei na Universidade de Harvard, em 1969. Cone não era, porém,
para mim, um desconhecido. Havia lido o seu primeiro livro que, mesmo sem a força
do segundo, já o anunciava. Foi esta a sensaçâo que tive ao terminar a leitura de A
Black Theology and Black Power, em 1969, em Cambridge.
Este livro, disse entào eu a mim mesmo, promete algo mais vigoroso que deve estar
vindo.
Desta forma, recebi a A Black Theology of Liberation como quem recebe algo já
esperado. A lucidez de Cone, a seriedade de suas análises, seu compromisso com os
oprimidos, nada me surpreendia. Tudo era, pelo contrário, a confirmação do anúncio
referido.
Recordo perfeitamente que o livro me chegou na véspera de uma viagem a Roma,
onde deveria coordenar, por uma semana, um seminário sobre educaçâo e libertação.
À noite, em casa, depois do jantar, aceitei o convite que o livro me fazia e comecei a
minha intimidade com ele. Atento, impactado, página após página, cheguei à antemanhã
com o livro nas mãos, terminando sua primeira leitura, horas depois, no
percurso Genebra-Roma. Voltando à Genebra, voltei ao livro também para a segunda
leitura, após a qual escrevi a Cone, dizendo-lhe da impressão que seu livro me havia
causado e da importância de sua imediata publicação na América Latina. É que a
“black theology”, de que Cone é uma das melhores expressões nos Estados Unidos, se
identifica, indiscutivelmente, com a “teologia da liberta-ção” que hoje floresce na
América Latina. O profetismo de ambas não significa somente um falar em nome dos
que se encontram proibidos de fazê-lo, mas, sobretudo, em lutar lado a lado com eles
para que, transformando revolucionariamente a soc iedade que os reduz ao silên-cio,
possam dizer, efetivamente, sua palavra. Dizer sua palavra, por isso mesmo, não é
apenas dizer "bom-dia” ou seguir as prescrições dos que, com seu poder, comandam
e explorarh. Dizer a palavra é fazer história e por ela ser feito e refeito. As classes
dominadas, silenciosas e esmagadas, só dizem sua palavra quando, tomando a
história em suas mãos, desmontam o sistema opressor que as destrói. É na práxis
revolucionária, com uma liderança vigilante e critica, que as classes dominadas
aprendem a “pronunciar” seu mundo, descobrindo, assim, as verdadeiras razões de
seu silêncio anterior.
Dai o caráter eminentemente político da “black theology” nos Estados Unidos, como
da teologia da libertação na América Latina.
O fato, porém, de que esta e aquela sejam e tendam a ser, cada vez mais, teologias
que privilegiam o político, não significa serem elas distorções da “pureza” teológica,
como se pudesse existir uma teologia neutra.
A “teologia branca”, para usar uma expressão ao gosto de Cone, é tão política quanto
a “black theology” ou a “teologia da libertação” na América Latina. A única diferença
está em que a política oculta, mas facilmente perceptível, dessa “teologia branca”, se
orienta no sentido da defesa dos interesses das classes dominantes. Esta é a razão
por que, simulando neutralidade, essa teologia se preocupa tanto com a conciliação
dos inconciliáveis, nega tão insistentemente a existência das classes sociais e sua luta
e, em suas incursões pelo social, não vai mais além dos re formismo modernizantes,
que são uma forma de preservar as estruturas de dominação.
Pensando desde o ponto de vista das classes dominantes os teólogos da neutralidade
impossível usam uma linguagem mistificadora. Empenham-se em amenizar a dureza
da realidade opressora e conclamam as classes dominadas, que invariavelmente
chamam de “pobres” ou de “menos afortunadas”, a encarar, com resignação, o seu
sacrifício. A dor que sofrem, a discriminação aviltante, a existência, como morte em
vida, tudo isso deve ser assumido pelas classes dominadas – pelos “pobres”, em sua
linguagem – como meio de purificação de seus pecados. No fundo, deveriam
agradecer aos “ricos” pela oportunidade que lhes dão de salvar-se...
Na verdade, porém, as classes doniinadas precisam, ao contrário, transformar o
sofrimento de não ser no sofrimento que a luta por ser lhes impõe. Enquanto o
primeiro constitui uma forma de aniquilamento, o segundo se converte na esperança
que as move. Só a esperança que nasce do hoje e no hoje desta luta confere sentido
ao futuro, não como vaguidade alienada ou como algo predeterminado, mas ao futuro
como tarefa de construção, como “façanha da liberdade”.
O que fazem aqueles teólogos é propor às classes oprimidas uma passividade maior
ainda, na medida em que rompem a unidade entre reconciliação e libertação. Para
eles, reconciliação não é outra coisa senão a adaptação dos dominados aos apetites
das classes dominantes. Tudo se passa como se fosse possível reduzir a reconciliação
a um pacto entre as classes dominantes e as classes dominadas – “ricos” e “pobres”.
Pacto no qual estas últimas, aceitando a continuidade da realidade opressora,
recebessem, em contrapartida, uma eficiente e modernizada assistência social.
Uma tal concepção elitista da reconciliação não encontra abrigo na teologia da
libertação na América Latina nem tampouco na “black theology” de que James Cone,
repitamos, é um dos mais agudos representantes. Em verdade, a reconciliação entre
opressores e oprimidos enquanto classes sociais, pressupõe a libertação destes, que
tem de ser forjada por eles mesmos, através de sua práxis revolucionária.
É necessário, contudo, que você, leitor ou leitora, inicie imediatamente sua
“convivência” com o pensamento de James Cone. Para concluir esta breve introdução,
acrescento apenas que seu pensamento, que emerge de uma realidade incrível, a
“diabólica” realidade do racismo nos Estados Unidos, tem uma força singular. Suas
reflexões teológicas sobre tal realidade, ele não as propõe como se fosse um ser do
outro mundo, uma espécie de estrangeiro curioso. James Cone é um homem
comprometido, “molhado” desta realidade que ele analisa com a autoridade de quem
nela se experimenta.
A Black Theology of Liberation é, por isso mesmo, um livro apaixonado, escrito
apaixonadamente. Alguns tremerão de raiva frente a ele; outros, de medo. Muitos,
contudo, encontrarão nele um estimulo para sua luta. James Cone não pretende mais
do que isto.
Conscientização e libertação:
uma conversa com Paulo Freire
Entrevista ao Instituto de Ação Cultural de Genebra – 1973.
IDAC: Apesar da crescente aceitação de suas idéias nos Estados Unidos, na Europa
ocidental e mesmo em certos países africanos (sobretudo na Tanzânia) é
precisamente da América Latina, que foi seu ponto de partida teórico e prático, que
provêm as criticas mais severas contra você. Essas criticas se baseiam em dois
pontos: primeiro, você é acusado de ter perdido o contato com a realidade latinoamericana;
em segundo lugar, lhe acusam também de idealismo e reformismo. O que
você pensa de tudo isso?
FREIRE: Inicialmente, gostaria de enfatizar que, de modo geral, levo a sério as
críticas que me fazem, em face das quais não assumo a atitude de quem se sente
atacado ou ofendido. Naturalmente, entre elas, há aquelas a que não posso dar
atenção por sua fragilidade. Não vejo, por exemplo, como preocupar-me quando sou
acusado de haver rompido meu compromisso com a América Latina por ter sido
professor visitante na Universidade de Harvard... Interessam-me, pelo contrário, as
críticas de fundo, as que se dirigem ao conteúdo mesmo de meu pensamento
pedagógico e político e que me apontam como idealista, subjetivista, reformista.
Estas são críticas que se vêm fazendo sobretudo na América Latina. Parece-me,
contudo, que os que assim me classificam, baseados em momentos ingênuos de
alguns trabalhos meus – criticados hoje por mim também – deveriam obrigar-se a
seguir os passos que venho dando. Na verdade, em meus primeiros estudos, ao lado
de ingenuidades, há igualmente posições críticas. De resto, não alimento a ilusão
ingênua e pouco humilde de atingir a absoluta criticidade. Parece-me que se impõe
aos que me analisam procurar saber qual dos dois aspectos – o ingênuo ou o crítico –
estaria sendo enfatizado no desenvolvimento de minha prática e de minha reflexão.
IDAC: Apesar disso, parece-nos que a acusação de idealismo repousa sobre uma base
real, se levarmos em conta a experiência histórica do movimento de conscientização
de massas empreendido no Brasil nos anos 1962 a 1964. Nesse tempo, a politização
extremamente rápida de largas camadas populares, obtida através do programa de
alfabetízação, não foi suficiente para opor urna resistência válida ao golpe de estado
militar que destruiu as esperanças despertadas nos campone-ses e subproletários
urbanos por essa tomada de consciência. Se nós estamos de acordo que a tomada de
consciência de uma situação de opressão não basta para mudar essa realidade
opressiva, teria sido necessário, na experiência brasileira, desenvolver, desde o
começo, uma política de organizaçào de massas populares com uma estratégia capaz
de orientar sua ação de transformação social e política.
FREIRE: Na medida em que, sobretudo nos meus primeiros trabalhos teóricos,
nenhuma ou quase nenhuma referência fiz ao caráter político da educação e em que
deixei de lado o problema das classes sociais e de sua luta, abri caminho a numerosas
interpretações e práticas reacionárias da conscientização, o que vale dizer, a
distorções do que ela realmente deve ser. Nem sempre, porém, as criticas a mim
feitas o são porque eu tenha sido pouco claro na análise e na fundamentação teórica
da conscientização. Pelo contrário, muitas destas críticas revelam a posição objetivista
mecanicista, por isto mesmo antidialética, de quem as faz. Enquanto mecanicistas,
negando a realidade mesma da consciência, recusam conseqiientemente a
conscientização. Deixo portanto claro que, ao buscar superar minhas constantes
debilidades, não tenho por que recusar o papel da conscientização no processo
revolucionário.
IDAC: É verdade que muitas vezes essas críticas foram inspiradas pelo que você
chama de posições mecanicistas e objetivistas. E, no entanto, Marx já chamava a
atenção para o fato de que a situação revolucionária implica não somente fatores
objetivos (a existência de uma realidade de opressão imposta a classes ou grupos
sociais que se tornam a “negação viva” desse sistema explorador), mas também de
fatores subjetivos (a consciência dessa realidade de opressão por parte dos oprimidos
e sua disposição de agir para pôr fim a esse estado de coisas).
FREIRE: Aqui nós tocamos em um dos problemas fundamentais que sempre
preocupou a filosofia e, de modo especial, a filosofia moderna. Refiro -me à questâo
das relações entre sujeito e objeto; consciência e realidade; pensamento e ser; teoria
e prática. Toda tentativa de compreensáo de tais relações que se funde no dualismo
sujeito-objeto, negando assim a unidade dialética que há entre eles, é incapaz de
explicar, de forma consistente, aquelas relações. Rompendo a unidade dia(ética
sujeito-objeto, a visão dualista implica na negação ora da objetividade, submetendo-a
aos poderes de uma consciência que a criaria a seu gosto, ora na negação da
realidade da consciência, transformada, desta forma, em mera cópia da objetividade.
Na primeira hi-pótese, caimos no erro subjetivista ou psicologista, expressão de um
idealismo antidialético pré-hegeliano; na segunda, nos filiamos ao ob-jetivismo
mecanicista, igualmente antidialético. Na verdade, nem a consciência é exclusiva
réplica da realidade nem esta é a construção ca-prichosa da consciência. Somente
pela compreensão da unidade dialética em que se encontram solidárias subjetividade
e objetividade podemos escapar ao erro subjetivista como ao erro mecanicista e,
então, perceber o papel da consciência ou do “corpo consciente” na transformação da
realidade.
Como explicar, por exemplo, em termos subjetivistas, a posição dos seres humanos,
como indivíduos, geração ou classe social, em face de situações históricas dadas, nas
quais “entram”, independentemente de sua consciência ou de sua vontade? Como
explicar, por outro lado, o mesmo problema de une ponto de vista mecanicista? Se a
consciência criasse, arbitrariamente, a realidade, uma geração ou uma classe social
poderia, ao recusar a situação dada de que começa a participar, transformá-la por
meio de um mero gesto significador. Se, por outro lado, a consciência fosse puro
reflexo da realidade, a situação dada seria eternamente a situação dada, “sujeito”
determinante de si mesma, de que os seres humanos nada mais seriam do que dóceis
objetos. Em outras palavras, a situação dada se transformaria a si mesma. Isto
implicaria em admitir a história como uma entidade mítica, exterior e superior aos
seres humanos, comandando-os, também caprichosamente, de fora e de cima.
Recordo agora o que disse Marx, na Sagrada Família:
“A história não faz nada, não possui nenhuma imensa riqueza, não liberta nenhuma
classe de lutas: quem faz tudo isto, quem possui e luta é o homem mesmo, o homem
real, vivo; não é a história que utiliza o homem como meio para trabalhar seus fins –
como se se tratasse de uma pessoa à parte – pois a história não é senão a atividade
do homem que persegue seus objetivos”.
Em verdade, ao defrontar-nos com uma dada situação na qual, “entramos”
independentemente de nossa consciência, temos nela a condição concreta que nos
desafia. A situação dada, como situação problemática, implica no que chamei, em
Pedagogia do Oprimido, de “inédito viável”, isto é, a futuridade a ser construída. A
concretização do “inédito viável”, que demanda a superação da situação
obstaculizante – condição concreta em que estamos inde-pendentemente de nossa
consciência – só se verifica, porém, através da práxis. Isto significa, enfatizemos, que
os seres humanos não sobrepas-sam a situação concreta, a condição na qual estão,
por meio de sua consciência apenas ou de suas intenções. por boas que sejam. A
possibilidade que tive de transcender os estratos limites de uma cela de 1m70 de
comprimento por 60 centímetros de largura, na qual me achava após o golpe militar
brasileiro de lº de abril de 1964, não era suficiente, contudo, para mudar minha
condição de encarcerado. Continuava dentro da cela, sem liberdade, apesar de poder
imaginar o mundo lá fora. Mas, por outro lado, a práxis não é a ação cega, desprovida
de intenção ou de finalidade. É ação e reflexão. Mulheres e homens são seres
humanos porque se fizeram historicamente seres da práxis e, assim, se tornaram
capazes de, transformando o mundo, dar significado a ele. É que, como seres da
práxis e só enquanto tais, ao assumir a situação concreta em que estamos, como
condição desafiante, somos capazes de mudar-lhe a significação por meio de nossa
ação. Por isto mesmo é que é impossível a práxis verdadeira no vazio antidialético ao
qual leva toda dicotomia sujeito-objeto. Esta é a razào pela qual o sub-jetivismo e o
objetivismo mecanicista são sempre obstáculos ao verdadeiro processo
revolucionário, não importam os caminhos que, na prática, tornem eles. Neste
sentido, é tão pernicioso à práxis revolucionária o subjetivismo que, esgotando-se na
mera denúncia verbal das injustiças sociais prega a transformação das consciências,
deixando porém intactas as estruturas da sociedade, quanto o mecanicismo que,
voluntarista e desprezando a rigorosa e perma nente análise científica da realidade
objetiva, se faz igualmente subjetivista ao “operar” sobre uma realidade inventada. É
exatamente este objetivismo mecanicista o que descobre “idealismo” ou “reformismo”
em toda referência ao papel da subjetividade no processo revolucionário. No fundo,
são todas estas expressões, ainda que diferentes, de uma mesma fonte ideológica – a
pequeno-burguesa.
O objetivismo mecanicista é uma distorção grosseira da posição marxista quanto à
questão fundamental das relações sujeito-objeto. Para Marx estas relações são
contraditórias e dinâmicas. Sujeito e objeto não se encontram dicotomizados nem
tampouco constituem uma identidade mas uma unidade dialética. A mesma unidade
dialética em que se encontram teoria e prática.
IDAC: Você acredita que a tomada de consciência de uma situação de exploração
possa se dar no que você chama o “contexto teórico” como os “Círculos de Cultura”
da experiência brasileira, onde um grupo de camponeses analfabetos, ao mesmo
tempo em que aprendiam a ler um código linguístico, descobriam a realidade sóciohistórica,
dando-se conta de que seu analfabetismo era apenas um aspecto de todo
um processo de dominação econômico-social à qual eles estavam submetidos? Ou
será que essa tomada de consciência, esse aprender a ler e a escrever sua própría
realidade, só é possível na e pela prática transformadora dessa realidade de
opressão?
FREIRE: A resposta a esta questão requer algumas considerações preliminares.
Comecemos a discutir, ainda que rapidamente, o que vem a ser o “contexto teórico”.
Partamos de que nem o subjetivismo, de um lado, nem o objetivismo mecanicista, de
outro, são capazes de explicar, de forma correta, este problema que, no fundo, é o
mesmo a que nos referimos anteriormente. E não podem porque, ao dicotomizarem o
sujeito do objeto, dicotomizam, automaticamente, a prática da teoria que, desta
forma, deixam de se constituir como a unidade dialética de que falamos antes.
Separada da prática, a teoria é puro verbalismo inoperante; desvinculada da teoria, a
prática é ativismo cego. Por isto mesmo é que não há práxis autêntica fora da
unidade dialetica ação-reflexão, práticateoria. Da mesma forma, não há contexto
teórico “verdadeiro a não sei em unidade dialética com o contexto concreto”. Neste
contexto, onde os fatos se dão, nos encontramos envolvidos pelo real, “molhados”
dele, mas não necessariamente percebendo a razão de ser dos mesmos fatos, de
forma crítica. No “contexto teórico”, “tomando distância” do concreto, buscamos a
razão de ser dos fatos. Em outras palavras, procuramos superar a mera opinião que
deles temos e que a tomada de consciência dos mesmos nos proporciona, por um
conhecimento cabal, cada vez mais científico em torno deles. No “contexto concreto”
somos sujeitos e objetos em relação dialética com o objeto; no “contexto teórico”
assumimos o papel de sujeito cognoscentes da relaçao sujeito-objeto que se dá no
“contexto concreto” para voltando a este, melhor atuar como sujeitos em relação ao
objeto.
Estes momentos constituem a unidade – e não a separação – da prática e da teoria;
da ação e da reflexão. Desde porém que estes mo -mentos não existem, em termos
autênticos, a não ser como unidade e como processo, qualquer deles que, em certo
instante, seja o ponto de partida, não apenas requer o outro mas o contém. Por isto é
que a reflexão só é legítima quando nos remete sempre, como salienta Sartre, ao
concreto, cujos fatos busca esclarecer, tornando assim possível nossa ação mais
eficiente sobre eles. Iluminando uma ação exercida ou exercendo-se, a reflexão
verdadeira clarifica, ao mesmo tempo, a futura ação na qual se testa e que, por sua
vez, se deve dar a uma nova reflexão. Em face de todas estas considerações me
parece claro que os camponeses analfabetos não necessitam de contexto teórico – em
nosso caso, do “Circulo de Cultura” – para realizar a tomada de consciência de sua
situação objetiva de oprimidos. Esta tomada de consciência se dá no “contexto
concreto”. É através de sua experiência quotidiana, com toda a dramaticidade em
queda implica, que eles tornam consciência de sua condição de oprimiàos. Mas o que
a sua tomada de consciência, feita na imersão em sua quotidianeidade, nem sempre
lhes dá, é a razão de ser de sua própria condição de explorados. Esta é uma das
centrais tarefas que evemos realizar no contexto teórico. Mas, por outro lado,
precisamente porque a consciência nào se transforma a não ser na práxis, o contexto
teórico não pode ser reduzido a um centro de estudos “desinteressados”. Neste
sentido, o “Circulo de Cultura” deve encontrar caminhos, que cada realidade local
indicará, através dos quais se alongue-em centro de ação política. Se uma radical
transformação das estruturas da sociedade, que explicam a situação objetiva em que
se acham os camponeses não se der, eles continuarão os mesmos, explorados da
mesma forma, não importa se muitos deles tenham, inclusive, alcançado a razão de
ser de sua própria realidade. É que o desvelamento da realidade que não esteja
orientado no sentido de uma ação política sobre a mesma, bem definida, clara, não
tem sen-tido. Somente assim, na unidade da prática e da teoria, da ação e da
reflexão, é que podemos superar o caráter alienador da quotidianeida-de, como
expressão de nossa maneira espontânea de nos mover no mundo ou como resultado
de uma ação que se mecaniza ou se burocratiza. Em ambas expressões da
quotidianeidade não alcançamos um saber cabal dos fatos de que apenas nos damos
conta. Daí a necessidade que temos, de um lado, de ir mais além da mera capotação
da presença dos faustos buscando assim, não só a interdependência que há entre
eles, mas também o que há entre as parcialidades constitutivas da totalidade de cada
um e, de outro lado, a necessidade de estabelecermos uma vigiilância constante
sobre nossa própria atividade pensante.
Este é, em última análise, o movimento dialético, impossível de ser compreendido do
ângulo do subjetivismo como do ponto de vista do objetivismo mecanicista, que se
põe como exigência fundamental a quem pretende conhecer a realidade. Este
movimento implica, de um lado, em que tal sujeito necessita de um instrumento
teórico para operar o conhecimento da realidade e, de outro, em que reconheça a
necessidade de reformulá-lo em função dos achados a que chegue com sua aplicação.
Com isto quero dizer que os resultados de seu ato de conhecer devem constituir-se
como normas de julgamento de seu próprio comportamento cognoscente.
IDAC: Parece-nos que você postula o engajamento político do cientista como uma
condição mesma da validade científica do seu saber. Tem-se a impressão de que,
para você, uma ciência “apolitica” não constitui senão um “falso saber”.
FREIRE: De fato, todo investigador digno desse nome sabe muito bem que a tão
propalada neutralidade da ciência, de que resulta a não menos propalada
imparcialidade do cientista, com sua criminosa indiferença ao destino que se dê aos
achados de sua atividade científica é um dos mitos necessários às classes
dominantes. Daí que, vigilante e crítico, não confunda a preocupaçao com a verdade,
que deve caracterizar todo esforço científico sério, com o mito daquela neutralidade.
Por outro lado, porém, ao buscar conhecer a realidade, o investigador crítico e
vigilante não pode pretender “domesticá-la” a seus objetivos.
O que ele quer é a verdade da realidade e não a submissão desta à sua verdade. Ao
mito da neutralidade da ciência e da imparcialidade do cientista não pode responder
com a mistificação da verdade, mas com seu respeito a ela. Mesmo porque, no
momento em que se deixe seduzir por esta falsificação da realidade já não será crítico
e a ação resultante de um tal “conhecimento” falso não terá êxito. Quanto mais crítico
e engajado, mais rigoroso com relação à verdade tem de ser o investigador, o que
não significa que sua análise alcance um perfil acabado ou definitivo da realidade
social, entre outras razões, pelo fato mesmo de que esta, para ser, tem de estar
sendo.
Esta atitude vigilante caracteriza o investigador crítico, o que não se satisfaz com as
aparências enganosas. Ele sabe muito bem que o conhecimento não é algo dado e
acabado, mas um processo social que demanda a ação transformadora dos seres
humanos sobre o mundo. Por isto mesmo não pode aceitar que o ato de conhecer se
esgote na simples narração da realidade nem tampouco, o que seria pior, na
decretação de que o que está sendo deve ser o que deve ser. Pelo contrário, quer
transformar a realidade para que o que agora está acontecendo de certa maneira
passe a ocorrer de forma diferente.
IDAC: As massas populares consideradas ao nível de seu “contexto concreto”, sem
possibilidade de acesso a uma visão crítica desse contexto, não estariam
necessariamente condenadas a uma opção reformista?
FREIRE: Na medida em que não se perceba a unidade dialética subjetividadeobjetividade,
não será possível entender algo tão óbvio – que a forma de ser das
classes dominadas não pode ser compreendida nelas mesmas, mas em sua relação
dialética com as classes dominantes. Deste modo, alguns tornam a tendência das
classes dominadas às soluções reformista; como se fosse uma incapacidade natural
das mesmas. Na verdade, porém, as classes dominadas se tornam reformistas em
suas relações com as dominantes, na situação concreta em que se acham.
Mergulhadas na alienação de sua quotidianeidade, não alcançam espontaneamente a
consciência de si, como “classe para si”.
IDAC: Não se poderia dizer que essa é precisamente a tarefa do partido
revolucionário?
FREIRE: Esta é, sem dúvida; uma das tarefas fundamentais do partido revolucionário
– a de empenhar-se na busca da organização consciente das classes oprimidas para
que, superando o estado de “classe em si”, se assumam como “classe para si”.
Um dos aspectos centrais de uma tal tarefa está em que as relações entre o partido
revolucionário e as classes oprimidas não são relações entre um pólo portador de uma
consciência histórica e outro, vazio de consciência ou portador de uma “consciência
vazia”. Se assim fosse, o papel do partido revolucionário seria o.de “dar” consciência
às classes dominadas e “dar” consciência a elas seria encher sua consciência com a
consciência de sua classe. De fato, porém, as classes sociais dominadas nem são
vazias de consciência nem sua consciência, por outro lado, é um depósito vazio.
Manipuladas pelas classes dominantes, em suas relações com elas, por elas
perfiladas, introjetando seus mitos, as classes dominadas refletem às vezes uma
consciência que não lhes é própria. Daí sua tendência reformista. Atravessadas pela
ideologia das classes dominantes, suas aspirações, em grande par-te, não
correspondem a seu ser autêntico. São impostas a elas por aquelas através dos mais
variados meios de manipulação social. Tudo isto desafia o partido revolucionário a
encarnar o seu indiscutível pa-pel pedagógico.
IDAC: É preciso, no entanto, estar alerta para o fato de que atribuir ao partido
revolucionário esse papel pedagógico comporta, implicitamente, um certo risco de se
cair na manipulação das massas.
FREIRE: É verdade que esse risco existe. Mas, salientemos, a pedagogia de um
partido revolucionário não pode ser a mesma dos partidos reacionários. Dai que seus
métodos de ação devam ser outros também. Os partidos reacionários,
necessariamente têm de evitar, por todos os meios, a constituição da consciência de
classe entre os oprimidos. O partido revolucionário, pelo contrário, tem ai um de seus
importantes quefazeres.
Finalmente, parece-me necessário afirmar que, ao analisar o papel que pode ter o
contexto teórico no aprofundamento critico da tomada de consciência que se verifica
no contexto concreto, não quero dizer que o partido revolucionário deva criar, em
qualquer situação histórica, contextos teóricos, como se fossem “escolas
revolucionarias” para depois fazer a revolução. De fato, jamais fiz tal afirmação. O
que tenho dito e agora repito é que o partido revolucionário que se recusa a aprender
com as massas populares, rompendo assim a unidade dialética entre ensinar e
aprender, já não é revolucionário, mas elitista. Esquece uma fundamental advertência
de Marx em sua Terceira Tese sobre Feuerbach: “O educador também precisa ser
educado”.
IDAC: Falemos um pouco, agora, dessa palavra que se acha indiscutivelmente ligada
a você – CONSCIENTIZAÇÃO – e que tem sido objeto de interpretações ambíguas ou
distorcidas. Há aqueles que se perguntam se as próprias classes dominantes não
podem “conscientizar o povo”. Muitos consideram a conscientização como uma
espécie de varinha mágica, capaz de “curar” a injustiça social pela simples
transformação da consciência dos homens. A nós parece essencial que, uma vez mais,
você esclareça essas mistificações e nos restitua o verdadeiro conteúdo da
conscientização.
FREIRE: Antes de tudo, quero deixar claro que é impossível conceber a
conscientização de forma correta, como se ela fosse um mero passatempo intelectual,
ou a constituição de uma racionalidade desgarrada do concreto. O esforço de
conscientização, que se identifica com a própria ação cultural para a libertaçào, é o
processo pelo qual, na relação sujeito-objeto, várias vezes referida nesta entrevista, o
sujeito se torna capaz de perceber, em termos críticos, a unidade dialética entre ele e
o objeto. Por isto mesmo, repitamos, não há conscientização fora da práxis, fora da
unidade teorica-prática, reflexão-ação.
Por outro lado, enquanto empenho desmitificador, a conscientização não pode ser
levada a efeito pelas classes sociais dominantes, que se acham proibidas de fazê-lo,
pela sua própria condiçlo de classes dominantes. A ação cultural que estas
necessariamente podem desenvolver é, pelo contrário, aquela que, mitificando a
realidade da consciência, mitifica a consciência da realidade. Seria uma ingenuidade,
como tenho afirmado sempre, esperar que as classes dominantes ponham em prática
ou sequer estimulem uma forma de ação que ajude as classes dominadas a assumirse
como tais. Insistamos em que este é um quefazer fundamental da liderança
revolucionária, desde que não se deixe cair na tentação pequeno-burguesado
objetivismo mecanicista. É que, para os mecanicistas, as classes dominadas estão aí,
como objetos, para ser libertadas por eles enquanto sujeitos da agido revolucionária.
O processo de libertação, para eles é algo mecânico. Daí o seu voluntarismo. Dai a
sua cofiança mágica na ação militar dicotomizada da açâo política. Daí que lhes seja
mais fácil realizar mil ações ar-riscadas, mesmo sem significaçãó política, do que
conversar com um grupo de camponeses durante 10 minutos...
Mas, por outro lado, sublinhamos também, a conscientização não pode fugir,
aventureiramente, ao limites que a realidade histórica lhe impõe. Isto é, o esforço de
conscientização não é possív el no desrespeito ao "viável histórico”.
Quero dizer que, nem sempre, a ação popular que pode decorrer do desvelamento de
uma dada situação concreta, mas setorial, encarna a expressão política do “viável
histórico”.
Em outras palavras, as massas populares podem perceber as razões mais imediatas
que explicam um fato particular, sem contudo captar, ao mesmo tempo, as relações
entre este fato particular e a totalidade de que ele participa, na qual se encontra o
“viável histórico”. Desta forma, adequada ao fato “B”, a ação “A” pode, contudo, do
ponto de vista da totalidade, ser inadequada. Seria o caso, por exemplo, de uma ação
que, politicamente válida do ponto de vista das condições de uma certa área local,
não o seja, porém, quanto às exigências da totalidade do país.
IDAC: Essa observação referente à dificuldade de captar a totalidade que contém o
“viável histórico” e de organizar os diferentes elementos que o constituem nos parece
fundamental. De fato, para assegurar sua dominação, as classes dominantes têm
necessidade de dividir os oprimidos, lançando-os uns contra os outros. Assim, por
exemplo, nos Estados Unidos, um mesmo sistema repressivo tem procurado lançar
uma minoria racial contra outra, ao mesmo tempo em que as reivindicações do
movimento de libertação das mulheres são apresentadas como contraditórias aos
interesses da classe operária branca, e assim por diante. Um outro exemplo da
tentativa de divisão dos oprimidos se encontra na Europa ocidental, onde os governos
dos países capitalistas estimulam muitas vezes a animosidade entre os operários
nacionais e os operários emigrados, fazendo-os crer que um é o adversário do outro,
quando, evidentemente, eles são ambos vítimas de um mesmo sistema de
exploração. Em que medida,a seu ver, o processo de conscientização pode contribuir
para a tomada de uma autêntica “consciência de classe” por parte dos oprimidos, que
supere essas visões parciais e fragmentárias da realidade?
FREIRE: Começarei por dizer, uma vez mais, que pelo fato mesmo de não poder ser
um quefazer atomizado, espontaneísta ou paternalista, o trabalho de conscientização
exige de quem a ele se dedica uma clara percepção das relações entre parcialidade e
totalidade, tática e estratégia, prática e teoria. Um tal trabalho demanda ainda uma
não menos clara visão que a liderança revolucionária deve ter de si em suas relações
com as massas populares. Nestas relações, não deve a liderança cair, de um lado, no
liberalismo e ausência de organização; de outro, no autoritarismo burocrático. Na
primeira hipótese, não seria capaz de encaminhar o processo revolucionávrio que
assim se esfacelaria em ações dispersas; na segunda, afogando a capacidade de ação
consciente das massas, as transformaria em puros objetos de sua mani-pulação. Em
ambos os casos resultaria impossível a conscientização. Uma outra dimensão deste
mesmo crucial problema – o das relações entre a liderança revolucionária .e as
massas populares – é o papel que deve ter aquela na superação, pelas massas
populares, do nível de “consciência das necessidade de classe”, em que
espontaneamente se podem encontrar, pelo de “consciência de classe”. O hiato
dialético entre estes níveis constitui indiscutivelmente um sério desafio à liderança
revolucionária. Tal hiato dialético é o “espaço” ideológico em que se encontram as
classes dominadas, em sua experiência hist6rica, entre o momento no qual, enquanto
“classe em si”, não atuam de acordo com o seu ser e aquele em que, assumindo-se
como “classe para si”, percebem a tarefa histórica que lhes é própria. Somente assim
suas necessidades se definem como interesses de classe.
Temos aí um problema indiscutível: de um lado, a consciência de classe não se gera
espontaneamente, fora da práxis revolucionária; de outro, esta práxis implica numa
clara consciência do papel histórico da classe dominada. Marx sublinha, na Sagrada
Família, a ação consciente do proletariado na abolição de si mesmo enquanto classe,
pela abolição das condições objetivas que o constituem.
De fato, a consciência de classe demanda uma prática de classe que, por sua vez,
gera um conhecimento a serviço dos interesses de classe. Enquanto a classe
dominante, como tal, constitui e fortalece a consciência de si no exercício do poder
econômico, político e sócio-cultural, com o qual se sobrepõe à classe dominada e lhe
impõe suas posições, esta só pode alcançar a consciência de si através da práxis
revolucionária. Por meio desta, a classe dominada se torna “classe para si” e, atuando
então de acordo com o seu ser, não apenas começa a conhecer, de forma diferente, o
que antes conhecia, mas também a conhecer o que antes não conhecia. Neste sentido
é que, não sendo a consciência de classe um puro estado psicológico nem a mera
sensibili-dade que têm as dasses para detect'ar o que se opõe a suas necessidades e
interesses, implica sempre num conhecimento de classe. Conhecimento, porém, não
se transfere, se cria, através da ação sobre a realidade. A superação do referido hiato
dialético, exigindo uma pedagogia revo-lucionária, exige também que as relações
entre partido revolucionário e classe dominada se verifiquem de tal forma que o
partido, no seu papel de consciência critica das massas populares, não lhes coloque
obstáculos ao processo de sua criticização.
IDAC: Nós poderíamos concluir essa conversa abordando novamente o problema
central da organização do partido revolucionário e da relação entre a vanguarda e as
massas.
Quais são, a seu ver, os elementos essenciais de um processo de educação política
numa perspectiva autenticamente liberadora?
FREIRE: Creio que, um dos mais sérios problemas que pode enfrentar um partido
revolucionário na capacitação de seus quadros de militantes está em como superar a
distância entre a opção revolucionária verbalizada pelos militantes e sua prática nem
sempre realmente revolucionária. A ideologia pequeno-burguesa que os “atravessou”,
em sua condição de classe, interfere no que deveria ser a sua prática revolucionária,
que se torna assim contraditória de sua expressão verbal. Neste sentido é que seus
erros metodológicos são, no fundo, de procedência ideológica. Na medida, por
exemplo, em que “guardam” em si o mito da “incapacidade natural” das massas
populares, sua tendência é descrer delas, é recusar o diálogo com elas e sentir-se
como seus exclusivos educadores. Desta forma, não fazem outra coisa senão cair na
dicotomia, típica de uma sociedade de classes, entre ensinar e aprender, em que a
classe dominante “ensina” e a classe dominada “aprende”. Rejeitam,
conseqüêntemente, aprender com o povo e se tornam prescritivos, depositantes do
que lhes parece ser o seu saber revolucionário. Daí a nossa convicção de que o
esforço de clarificação em torno do que é o processo de ideologização se deva
constituir como um dos pontos introdutórios a todo seminário de capitação de
militantes, simultaneamente com o exercício da análise dialética da realidade. Deste
modo, o seminário se converte numa oportunidade na qual, ao serem os seus
participantes desafiados a superar sua visão ingênua e focalista da realidade por
outra, crítica e totalizante, vâo igualme nte clarificando-se ideologicamente. Vão
percebendo que o diálogo com o povo, na ação cultural para a libertação, não é uma
formalidade, mas uma condição indispensável ao ato de conhecer, se nossa opção é
realmente revolucionária. Vão percebendo que é inviável a dicotomia entre a intenção
do militante, que é política, e os métodos, técnicas, processos pelos quais se põe em
prática aquela intenção. A opção política do militante determina os caminhos de sua
expressão. Há de haver diferenças radicais entre um militante de esquerda e um
militante de direita no uso que façam de um mesmo projetor de slides. Muitos dos
obstáculos a uma correta ação político-revolucionária se encontram na contradição
entre a opção revolucionária e o emprego de procedimentos que correspondem à
prática da denominação.
Se minha opção é revolucionária é impossível considerar o povo como objeto de meu
ato libertador. Mas, no momento em que me recuso, coerentemente, a ter no povo a
mera incidência de minha ação revolucionária, não posso fazer dele, igualmente, o
recipiente de meu “saber revolucionário”.
Se minha opção é teacionária, pelo contrário, tenho de fazer do povo um puro
instrumento de minha ação preservadora do “status quo”, que eu admito apenas
reformar. E se ambas estas opções se concretizam sempre historicamente,
historicamente também se diferenciam. Isto quer dizer que, se os meios de
dominação e de libertação variam historicamente, não há, porém, possibilidade
histórica em que se identifiquem.
A ação político-revolucionária nào pode repetir a ação político-dominadora.
Antagônicas nos seus objetivos, se antagonizam nos seus métodos, como no uso que
fazem das ajudas de que se servem.
Algumas notas sobre conscientização1
1974
O próprio título que o Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas deu
a este seminário: “An invitation to conscientization and deschooling – a continuing
conversation”, o define como um encontro informal e simples. Na verdade, aqui
estamos para retomar um diálogo há muito tempo começado. Com alguns,
diretamente; com outros, indiretamente. Em qualquer, dos casos, através da
mediação de nossos escritos. Mas, na medida mesma em que este é um encontro
dialógico, a simplicidade e a espontaneidade que o devem caracterizar não podem
converter-se, a primeira, em simplismo, a segunda, em espontaneismo. Dialogar não
é um perguntar a esmo – um perguntar por perguntar, um responder por responder,
um contentar-se por tocar a periferia, apenas, do objeto de nossa curiosidade, ou um
quefazer sem programa.
A relação dialógica é o selo do ato cognoscitivo, em que o objeto cognoscível,
merliatizando os sujeitos cognoscentes, se entrega a seu desvelamento crítico.
A importância de uma tal compreensão da relação dialógica se faz clara na medida em
que tornamos o ciclo gnosiológico como uma totalidade, sem dicotomizar nele a fase
da aquisição do conhecimento existente da fase da descoberta, da criação do novo
conhecimento. Esta “corresponde, alíás, como salienta o prof. Álvaro Vieira Pinto, à
mais elevada das funções do pensamento – a atividade heurística da consciência”.
Em ambas estas fases do ciclo gnosiológico se impõe uma postura crítica, curiosa, aos
sujeitos cognoscentes,.em face do objeto de seu conhecimento. Postura crítica que é
negada toda vez que, rompendo-se a relação dialógica, se.instaura um processo de
pura transferência de conhecimento, em que conhecer deixa de ser um ato criador e
recriador para ser um ato “digestivo”.
“An invitation to conscientization and deschooling” – palavras que,
independentemente do desejo de Ivan Illich e meu, se converteram em palavras
mágicas ou quase mágicas – nos reúne hoje precisamente para que, tomando-as
como objetos de nossa curiosidade crítica, analisemos, tanto quanto possível, a sua
real significação.
Neste esforço analítico para o qual somos todos chamados, há, porém, tarefas
específicas que, constituindo-se como ponto de partida de nossa reflexào comum,
devem ser cumpridas por alguns de nós. Por Ivan Illich, por Henrich Dauber, por
Michael Huberman, por mim.
A mim me cabe, nesta jornada em que o tempo disponivél não corresponde à
extensão da tarefa que nos impomos, iniciar este processo. E, para fazê-la, devo
tomar distância do objeto de minha reflexão – o processo de conscientização – e
começar a indagar-me em torno dele. Parece-me que a primeira preocupação neste
perguntar-me que é, em parte, um reperguntar-me, se deve centrar na palavra
mesma conscientização, cuja origem é consciência. A compreensão do processo de
1 Este texto foi publicado por RISK, W: C. C., Genebra, 1975.
Vieira Pinto, Álvaro, Ciência e Existencia, Ed. Paz e Terra, Rio, 1977, 2ª ed., pág. 363.
conscientização e sua prática se encontra, portanto, em ligação direta com a
compreensão que se tenha da vencia em suas relações com o mundo.
Se me ponho numa posição idealista dicotomizando consciência e realidade, submeto
esta àquela, como se a realidade fosse constituída pela consciência. Assim, a
transformação da realidade se dá pela transformação da consciência. Se me ponho
numa posição mecanicista, dicotomizando igualmente consciência e realidade, tomo a
consciência como um espelho que apenas reflete a realidade. Em ambos os casos,
nego a conscientização que só existe quando não apenas reconheço mas experimento
a dialeticidade entre objetividade e subjetividade, realidade e consciência, prática e
teoria.
Toda consciência é sempre consciência de algo, a que se intenciona.
A consciência de si dos seres humanos implica na consciência das coisas, da realidade
concreta em que se acham como seres históricos e que eles aprendem através de sua
habilidade cognoscitiva.
O conhecimento da.realidade é indispensável ao desenvolvimento da consciência de si
e este ao aumento daguele conhecimento. Mas o ato de conhecer que, se autêntico,
demanda sempre o desvelamento de seu objeto, não se dá na dicotomia antes
referida, entre objetividade e subjetividade, ação e reflexão, prática e teoria.
Daí se faça importante, na prática do desvelamento da realidade social, no processo
conscientizador, que a realidade seja apreendida não como algo que é, mas como
devenir, como algo que está sendo. Mas se está sendo, no jogo da permanência e da
mudança, e se não é ela o agente de tal jogo, é que este resulta da prática de seres
humanos sobre ela.
Impõe-se, então, discernir a razào de ser desta prática – as finalidades, os objetivos,
os métodos, os interesses dos que a comandam; a quem serve, a quem desserve,
com o que se percebe, afinal, que esta é apenas uma certa prática, mas não a
prática, tomada como destino dado. Desta maneira, na prática teórica, desveladora
da realidade social, a apreensão desta implica na sua compreensão como realidade
sofrendo sempre uma certa prática dos seres humanos. Sua transformação, qualquer
que seja ela, não pode verificar-se a não ser pela prática também.
Agora bem, se não há conscientização sem desvelamento da realidade objetiva,
enquanto objeto de conhecimento dos sujeitos envolvidos em seu processo, tal
desvelamento, mesmo que dele decorra uma nova percepção da realidade
desnudando-se, não.basta ainda para autenticar a conscientização. Assim como o
ciclo gnosiológico não termina na etapa da aquisição do conhecimento existente, pois
que se prolonga até a fase da criação do novo conhecimento, a conscipntização não
pode parar na etapa do desvelamento da realidade. A sua autenticidade se dá quando
a prática do desvelamento da realidade constitui uma unidade dinâmica e dialética
com a prática a transforção
Creio que algumas observações podem e devem ser feitas a partir destas reflexões.
Uma delas é a crítica que a mim mesmo me faço pelo fato de, em Educação como
Prática da Liberdade, ao considerar o processo de conscientização, ter tomado o
momento do desvelamento da realidade social comove fosse uma espécie de
Ver a este propósito, neste volume , “Conscientização e Libertação, uma conversa com Paulo Freire”.
motivador psicológico de sua transformação. O meu equívoco não estava,
obviamente, em reconhecer a fundamental importância do conhecimento da realidade
no processo de sua transformação. O meu equívoco consistiu em não ter tomado
estes pólos – conhecimento da realidade e transformação da realidade – em sua
dialeticidade. Era como se desvelar a realidade já significasse a sua transformação.
Diga-se de passagem que, em Pedagogia do Oprimido e em Cultural Actio n for
Freedom já não é esta a posição que tomo em face do problema da conscientização. A
práxis que medeia estes dois livros daquele me ensinou a ver o que antes não me
havia sido possível ver. Mas é sobretudo em textos mais novos – entrevistas ou
pequenos ensaios como Education, Liberation and the Church –, que resultam de
minha experiência mais recente, que a abordagem deste problema toma uma feição
distinta da que se encontra em Educação como Prática da Liberdade.
O mesmo equívoco em que caí, no começo de minhas atividades, venho
surpreendendo, na minha experiência atual, às vezes mais acentuado, em pedagogos
que não vêem as dimensões e implicações políticas de sua prática pedagógica. Daí
que falem em uma “conscientização estritamente pedagógica”, diferente daquela a
ser desenvolvida por políticos. Uma conscientização que se daria na intimidade de
seus seminários, mais ou menos asséptica, que não teria nada que ver com nenhum
compromisso de ordem política.
Uma tal separação entre educação e política, ingênua ou astutamente feita,
enfatizemos, não apenas é irreal, mas perigosa. Pensar a educação
independentemente do poder que a constitui, desgarrá-la da realidade concreta em
que se forja, nos leva a uma das seguintes conseqüências. De um lado, reduzi-la a
um mundo de valores e ideais abstratos, que o pedagogo constrói no interior de sua
consciência, sem sequer perceber os condicionamentos que o fazem pensar assim; de
outro, convertê-la num repertório de ténicas comportamentais. Ou ainda, tomar a
educação como alavanca da transformação da realidade.
Na verdade, porém, não é a educação que forma a sociedade de uma certa maneira,
mas a sociedade que, formando-se de uma certa maneira, constitui a educação de
acordo com os valores que a. norteiam. Mas, como este não é um processo mecânico,
a sociedade que estrutura a educação em função dos interesses de quem tem o
poder, passa a ter nela um fator fundamental paia sua preservação.
A concepção da educação como alavanca da transformação da realidade resulta, em
parte, da apreensão incompleta do ciclo acima referido. Funda-se no segundo
momento do ciclo, o em que a educação funciona como instrumento de preservação.
É como se os defensores de tal concepção dissessem: “Se a educação mantém é
porque pode transformar o que mantém”. Esquecem-se de que o poder que a cria
para que ela o mantenha não a permite trabalhar contra ele. Por isto é que a
transformação radical e profunda da educação, como sistema, só se dá – e mesmo
assim não de forma automática e mecânica – quando a sociedade é transformada
radicalmente também.
Isto não significa, porém, que o educador que deseja, e mais do que deseja, se
compromete com a transformação radical ou revolucionária de sua sociedade, não
tenha o que fazer. Tem muito o que fazer, sem que haja fórmulas prescritivas para
seu quefazer, pois que deve descobri-lo e descobrir como fazê-lo nas condíções
concretas históricas em que se acha.
É preciso, porém, que reconheça, lucidamente, suas limitações e, aceitando-as com
humildade, evite cair, de um lado, num pessimismo aniquilante, de outro, num
oportunismo cínico.
O fato, por exemplo, de que determinadas circunstâncias históricas em que se
encontra o educador não lhe permitam participar, mais ativamente, deste ou daquele
aspecto constitutivo do processo de transformação revolucionária de sua sociedade,
não invalida um esforço menor, em que esteja engajado, desde que este seja o
esforço que, lhe é historicamente viável.
Em história se faz o que historicamente é possível e não o que se gostaria de fazer.
Daí a necessidade da compreensão cada vez mais lúcida de sua tarefa, que é política,
das limitações que tem, para que possa enfrentar, tanto quanto possível,
exitosamente, aquela oscilação referida, entre a tentação do pessimismo e a do
oportunismo.
Este é sempre um momento existencial difícil. Muitas vezes, é exatamente quando o
experimenta que o educador ouve falar da conscientização. Por motivos diversos,
entre eles a própria falta de clareza com relação à sua tarefa, aproxima-se da
conscientização como quem continua ouvindo falar dela e não como quem se apropria
de sua significação exata. Desta forma, magiciza o processo de conscientização,
emprestando-lhe poderes que realmente não tem.
Cedo ou tarde, porém, o feitiço se desfaz, desfazendo também a esperança ingênua
que o alimentou. Alguns, entre esses educadores, frustrados com os resultados de
sua prória magia, em lugar de negá-la, negam o papel mesmo da subjetividade na
transformação da realidade, passando assim a engrossar as fileiras dos mecanicist as.
No fundo, contudo, a experiência me vem ensinando quão difícil é fazer a travessia
pelo domínio da subjetividade e da objetividade, em última análise, estar no mundo e
com o mundo, sem cair na tentação de absolutizar uma ou outra. Quão difícil é,
realmente, apreendê-las em sua elasticidade.
Por tudo isto é que um dos focos – talvez o preponderante – de minha atenção,
nestes quatro anos em que, trabalhando para o Conselho Mundial de Igrejas me
tornei uma espécie de “andarilho do óbvio”, venha sendo o da desmitificação da
conscientização.
Nesta andarilhagem, venho aprendendo também quão importante se faz tomar o
óbvio como objeto de nossa reflexão crítica e, adentrando-nos nele, descobrir que ele
não é, às vezes, tão óbvio quanto parece.
Dai a ênfase que dou – e com que não raro percebo que frustro a certos auditórios –
não propriamente à análise de métodos e técnicas saem si mesmos, mas ao caráter
político da educação, de que decorre a impossibilidade de sua neutralidade.
Se me convenço de uma tal impossib ilidade, não apenas por ouvir falar dela, mas por
constatá-la na minha própria experiência, percebo então a relação entre métodos e
finalidades, no fundo, a mesma que há entre tática e estratégia. Desta forma, em
lugar de ingenuamente absolutizar os métodos, os entendo a serviço de .finalidades,
na busca de cuja realização eles se fazem e se refazem.
Talvez seja esta mitificação de métodos e de técnicas – estou apenas pensando alto –
e a redução da conscientizaçào a certos métodos e técnicas usados na América
Latina, no campo da alfabetização de adultos, que expliquem, em parte pelo menos,
afirmações que sempre escuto. Afirmações segundo as quais a conscientização
aparece como uma espécie de exotismo tropical, como algo que fosse especificamente
terceiro-mundista.
Fala-se assim da conscientização como um quefazer inviável em “sociedades
complexas”, como se o Terceiro Mundo não fosse, também ele, embora a seu modo,
complexo.
Sem querer voltar aqui a análises feitas em trabalhos anteriores sobre a presença de
um Terceiro Mundo no corpo do Primeiro e a de um Primeiro na intimidade do
Terceiro, gostaria simplesmente de sublinhar que o processo de conscientização não é
privilégio do Terceiro Mundo, pois que é fenômeno humano.
Enquanto corpos conscientes, em relação dialética com a realidade objetiva sobre que
atuam, os seres humanos estão envolvidos em um permanente processo de
conscientização. O que varia, no tempo e no espaço, são os conteúdos, os métodos,
os objetivos a conscientização. Sua fonte original se encontra no momento remoto
que Chardin chama de “Hominização”, a partir do qual os seres humanos se fazem
capazes de desvelar a realidade sobre que atuam, de conhecê-la e de saber que
conhecem.
O problema que se põe, portanto, não é o da viabilidade ou não da conscientização
em sociedades ditas complexas, mas o da indesejabilidade, o da recusa à
transplantação do que se fez, de forma diferente, em diferentes áreas da América
Latina, para outro espaço histórico, sem o devido respeito por ele. Não importa que
esse outro espaço histórico seja do Terceiro Mundo também. E como um homem do
Terceiro Mundo, eu bem sei o que representa o poder ideologicamente alienador dos
transplantes a serviço da dominação. Não seria eu, que contra eles sempre estive,
que hoje os defenderia.
Mas, além da indesejabilidade dos transplantes, há outra indesejabilidade, a da
burocratizaç5o da conscientização. Sua institucionalização que, esvaziando-a de seu
dinamismo, esclerosando-a, termina por transformá -la numa espécie de arco-íris de
receitas – outra forma de mitificá-la.
Termino aqui esta retomada, que sei demasiado incompleta, de tema a que, bem ou
mal, me dedico há bastante tempo. Mas, mesmo incompleta, creio que seja suficiente
para cumprir o seu principal fim: provocar comentários e suscitar questões com que
se ampliará.
Ao fazê-lo, direi apenas que o aprendizado que venho tendo nesta Casa e a partir
dela, em nada diminuiu as convicções básicas com as quais iniciei, bem jovem ainda,
as primeiras experiências em meu país. Convicções de um cristâo em permanente
estado de busca. Pelo contrário, este aprendizado as reforçou. E as reforçou
sobretudo quando me ajudou a superar a visão mais ingênua pela visão mais crítica
de certos problemas, em face do desafio que novas realidades humanas me
provocaram.
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