O DIÁLOGO ENTRE O ENSINO E A APRENDIZAGEMMeu batismo de fogo
Weisz, Telma e Sanchez, Ana. São Paulo, Ática, 2001, 133 páginas.
Este livro trata de alguns aspectos essenciais das mudanças em curso na educação, tanto na compreensão do processo de ensino quanto na do processo de aprendizagem, vistos sob a ótica construtivista.
Neste capítulo a autora faz um relato reflexivo sobre sua primeira experiência como professora, em 1962, no último ano do seu curso Normal. As 45 crianças que compunham a sua classe tinham entre 11 e 12 anos e haviam passado para a 2a série por decreto do atual governador, após terem repetido várias vezes a 1a série. Alguns meninos sabiam escrever alguma coisa e outros só copiavam.
Inúmeras situações vividas traziam à professora confusão e impotência, embora ela procurasse realizar toda a seqüência de atos que estava aprendendo em seu curso. Por exemplo, aos domingos, encontrava-se com um aluno que vendia balas na porta do cinema. Ela lhe dava uma nota de cinqüenta para comprar balas que custavam 17 e ele lhe devolvia o troco na mesma hora, com toda a segurança. Na segunda-feira, ela passava na lousa um problema do tipo: “João tem 5 figurinhas, comprou mais 3, quantas figurinhas João tem?” E o mesmo menino lhe perguntava: “Fessora, é de mais ou é de menos?”.
Em outras circunstâncias, relata ter conhecido um menino de 12 anos que ganhava a vida fabricando pipas, retido numa classe que só fazia coordenação motora. Como pode alguém que vive de fabricar pipas não ter coordenação motora?
Todas estas experiências foram deixando na autora a sensação de ignorância. As informações e idéias que circulavam na educação não davam conta do problema do ensino. Muitas questões foram se apresentando como desafiadoras:
• Por que, diante de uma mesma situação, uma pessoa pode aprender e outra não?
• O que fazer com a sensação de cegueira profissional?
• O que aprenderam comigo – ou apesar de mim – os meus alunos?
• Como observar uma sala de aulas e interpretar as ações das crianças e do professor com profundidade?
• Como é que a gente faz para que as crianças tenham sucesso escolar?
Um novo olhar sobre a aprendizagem
Nos anos sessenta, época das primeiras experiências profissionais de T. Weisz predominava, o ponto de vista “adultocêntrico”: concepção de aprendizagem das crianças a partir da perspectiva do adulto que já dominava o conteúdo que desejava ensinar. Sem “enxergar” o objeto de seu conhecimento com os olhos de quem ainda não sabe, cabia ao professor definir o que era mais fácil e o que era mais difícil para os alunos e quais os caminhos que eles deveriam percorrer para realizar as aprendizagens desejadas.
A metodologia embutida nas cartilhas de alfabetização contribui para o fracasso na escola
Nos anos setenta, as pesquisas realizadas por Emília Ferreiro, Ana Teberosky e colaboradores evidenciaram os problemas que a metodologia embutida nas cartilhas cria para muitas crianças. Segundo mostrou a psicogênese da língua escrita, em uma sociedade letrada, as crianças constroem conhecimentos sobre a escrita desde muito cedo, a partir do que observam e refletem a esse respeito.
Como as crianças constroem hipóteses sobre a escrita e seus usos a partir da participação em situações nas quais os textos têm uma função social de fato, freqüentemente as mais pobres são aquelas que têm as hipóteses mais simples, pois vivem poucas situações desse tipo. Mas, vindas de famílias pobres ou não, hoje – como no passado – é muito comum que, mesmo tendo o professor ensinado cuidadosamente a escrever moleque, elas escrevam muleci. O que o professor vai fazer a partir desse momento dependerá, fundamentalmente, de sua concepção de aprendizagem. Porque, tendo consciência disso ou não, todo ensino se apóia em uma concepção de aprendizagem.
É possível enxergar o que o aluno já sabe a partir do que ele produz e pensar no que fazer para que aprenda mais
Nas últimas décadas, muitas pesquisas têm ajudado a consolidar uma concepção que considera o processo de aprendizagem como resultado da ação do aprendiz.
O que já sabe um aluno que escreveu muleci?
• escrevemos com letras e essas letras representam sons;
• não é qualquer letra que representa qualquer som;
• provavelmente, pela sua experiência de empregar o “c” para escrever casa e cavalo, considerou que a mesma letra serviria para escrever o que de moleque.
Não se pode negar que exista muita lógica no raciocínio do aluno, embora a sua escrita não coincida com a escrita convencional da palavra. Para interpretar adequadamente o que está acontecendo com a aprendizagem de seu aluno, o professor precisa de um conhecimento que é produzido no território da ciência. Isso porque, na verdade, a gente consegue ver apenas o que tem instrumentos para compreender.
É preciso considerar o conhecimento prévio do aprendiz e as contradições que ele enfrenta no processo
Na concepção de aprendizagem que se tem chamado de construtivista – na qual o conhecimento é visto como produto da ação e reflexão do aprendiz – esse aprendiz é compreendido como alguém que sabe algumas coisas e que, diante de novas informações que para ele fazem algum sentido, realiza um esforço para assimilá-las. Ao deparar com questões que a ele se colocam como problemas, depara-se também com a necessidade de superação. E o conhecimento novo aparece como resultado de um processo de ampliação, diversificação e aprofundamento do conhecimento anterior que ele já detém. Assim sendo, é inerente à própria concepção de aprendizagem que se vá buscar o conhecimento prévio que o aprendiz tem sobre qualquer conteúdo.
Essa tarefa só é possível com conhecimento científico específico. Por exemplo: a partir da revelação feita pela psicogênese da língua escrita – de que, enquanto se alfabetizam, as crianças passam por um momento em que representam com apenas uma letra os fragmentos sonoros que conseguem isolar na fala – tornou-se possível considerar MLC ou UEI (para escrever moleque) como a expressão de um conhecimento sobre a escrita que precede a compreensão do funcionamento do sistema alfabético. Crianças com esse tipo de hipótese sobre a escrita muitas vezes escrevem, por exemplo, GATO, PATO e RATO da mesma forma: AO. No entanto, para elas mesmas isso é inaceitável, pois uma das primeiras hipóteses que as crianças constroem sobre o sistema de escrita é a que diz que nomes diferentes não devem ser escritos com as mesmas letras. Trata-se de um conflito cognitivo que vai gerar necessidade de superação das hipóteses inadequadas através da construção de novas teorias explicativas. Nesses momentos, a intervenção do professor é fundamental.
Para aprender, a criança passa por um processo que não tem a lógica do conhecimento final, como é visto pelos adultos.
Do ponto de vista construtivista é preciso aceitar a idéia de que nenhum conceito – nem o número, nem a quantidade, nem nada – nasce com o sujeito ou é importado de fora, mas precisa ser construído. E que esse processo não tem a lógica do conhecimento do adulto. Por exemplo: a um adulto pode parecer absurdo que alguém imagine que uma certa quantidade de bolinhas, quando espalhadas, contenha mais unidades do que quando juntas. Mas é isso o que pensam as crianças pequenas, até que tenham construído a noção de conservação de quantidade.
Embora a pedagogia namore o construtivismo desde o começo do século passado, foram necessários anos para que se produzisse um conhecimento que pudesse servir de referência a uma prática pedagógica apoiada nessa concepção de aprendizagem. O que mostra que não é verdadeira a idéia de que uma concepção da aprendizagem gera diretamente uma pedagogia de um determinado tipo. É condição, mas não é suficiente.
O primeiro grande salto no caminho que percorremos para chegar até aqui. E o que não deu certo
Nos anos 20, chega ao Brasil a visão da criança não como um adulto em miniatura, mas como um ser com características distintas – uma visão do aprendiz como um ser ativo. Eram as idéias da Escola Nova, nome que se deu a vários movimentos dentro da educação através de educadores importantes como Dewey, Claparède, Decroly, Montessori e Freinet. Embora tivessem algumas divergências entre si, assumiam todos o mesmo princípio norteador: a valorização do indivíduo como ser livre, ativo e social.
Claparède, considerado o pai da Escola ativa, tinha como premissa que a necessidade é a mola propulsora da ação inteligente. Ficava então a questão: “como suscitar a necessidade na escola? Para responder a essa questão, os pensadores construíram um modelo de ensino: a aprendizagem por descoberta. A escola deveria permitir às crianças se auto-regularem, buscando o conhecimento na medida de suas necessidades, como se o conhecimento fosse uma espécie de alimento para o espírito. Evidentemente, um modelo como esse refutava a idéia de decidir a priori os conteúdos do ensino. A utilização, freqüentemente distorcida dessas idéias acabou por incentivar uma onda de práticas espontaneístas.
Era como se esquecêssemos que a escola é uma instituição cuja função social é claramente colocada: formar o cidadão daquele momento histórico, naquele país, naquela circunstância.
Ao colocar o foco exclusivamente no processo de aprendizagem, o movimento da Escola Nova deixou de lado o produto dessa aprendizagem. Essa posição derivava, entre outros motivos, de uma crítica bastante pertinente à aprendizagem não significativa, de pura memorização, sem sentido. Mas, tentando mudar essa realidade, o que se acabou fazendo foi “entortar a vara para o outro lado”. A idéia predominante era que o papel do ensino deveria ser o de criar possibilidades para que o aluno pudesse “aprender a aprender”, não importava o quê.
Além desse “desinteresse” em relação aos conteúdos escolares, a Escola Nova, profundamente criticada no Brasil nos anos 1970, possuía pressupostos que não funcionavam. Suas orientações ficavam geralmente no nível das recomendações gerais: é importante trabalhar em grupo, desenvolver a cooperação, a criatividade, estimular a curiosidade.O discurso era construtivista, mas a prática era empirista. Surgiram muitas propostas pedagógicas diferenciadas. Montessori, por exemplo, desenvolveu uma pedagogia centrada na percepção da criança, com um método apoiado em uma série de materiais específicos e caros, confeccionados especificamente para o ensino escolar. Freinet, ao contrário, trouxe o mundo social para dentro da escola. Foi um dos primeiros a reiterar a importância do trabalho do aprendiz e, como Dewey, o papel educativo de desenvolver projetos com os alunos. Mas nenhuma proposta deu conta do tratamento didático de conteúdos escolares específicos em sua totalidade.
Começa, com Piaget, a construção de um novo olhar sobre a aprendizagem.
Piaget formulou com clareza a idéia de que, ao conseguir conhecer alguma coisa, o aprendiz transforma o real, o mundo e a si mesmo. Ele colocou de pé uma epistemologia, isto é, uma teoria do conhecimento que tenta explicar como se avança de um conhecimento menos elaborado para um conhecimento mais elaborado.
Emília Ferreiro, aluna de Piaget, investigou a psicogênese do sistema de escrita, possibilitando-nos um enorme salto de qualidade na compreensão de questões muito importantes para a educação. O modelo geral de aprendizagem no qual se apóia a psicogênese da língua escrita é de que há um processo de aquisição no qual a criança vai construindo hipóteses, testando-as, descartando umas e reconstruindo outras. Mas durante a alfabetização, aprende-se mais do que a escrever alfabeticamente. Aprendem-se, pelo uso, as funções sociais da escrita, as características discursivas dos textos escritos, os gêneros utilizados para escrever e muitos outros conteúdos.
O modelo de ensino atualmente relacionado ao construtivismo chama-se aprendizagem pela resolução de problemas e pressupõe uma intervenção de natureza própria. Propõe-se que a didática construa situações tais que o aluno precise pôr em jogo o que ele sabe no esforço de realizar a tarefa proposta.
Aprender a aprender é algo possível apenas a quem já aprendeu muita coisa.
O conceito de aprender a aprender continua, na essência, sendo o mesmo proposto pela Escola Nova. Na prática, no entanto, ele muda radicalmente. Se antes o aprender a aprender era visto como um desenvolvimento geral da lógica do aprendiz, hoje sabemos que há um desenvolvimento da lógica sim, mas que o aprendiz precisa dominar conhecimentos de diferentes naturezas, como as linguagens, por exemplo. Precisa ter flexibilidade e autonomia.
A bagagem básica necessária hoje é acadêmico-cultural, em que se articulam conhecimentos de origem tradicionalmente escolar e relacionados aos movimentos cultuais da sociedade.
Nessa perspectiva, a escola hoje tem uma tripla função: levar os alunos a aprender a aprender, dar-lhes os fundamentos acadêmicos e, sem perda de tempo, equalizar as enormes diferenças no repertório de conhecimento com que eles chegam. Todos sabemos que é impossível à escola realizar sozinha essa terceira função, mas sua contribuição é essencial.
O que sabe uma criança que parece não saber nada
Quando se fala da importância de o professor compreender o que seus alunos sabem ou não sabem, para poder atuar, pensa-se que é preciso ter uma boa noção daquilo que os alunos sabem do ponto de vista do conteúdo a ser aprendido, visto da perspectiva do adulto. Por exemplo, quando uma criança escreve fazendo uso de um sistema silábico ou próximo dele, isso não costuma ser reconhecido como um saber.
Um olhar cuidadoso sobre o que a criança errou pode ajudar o professor a descobrir o que ela tentou fazer
Para descobrir o que pensa o aprendiz nesse território do saber não reconhecido é preciso observar com olhos despojados, compreendendo qual a natureza do erro que ela cometeu. Quando o professor desconsidera o esforço de seu aluno, dizendo apenas que o que ele fez não está correto, sem lhe devolver uma questão, algo sobre o que pensar, acaba, mesmo sem querer, desvalorizando sua tentativa, seu esforço.
Na verdade, o conhecimento se constrói freqüentemente por caminhos diferentes daqueles que o ensino supõe. Na busca da coerência, da elegância e de uma lógica interna, as crianças fazem, por exemplo, a regularização do que é irregular na língua, dizendo “eu cabi”, em vez de eu coube. E é exatamente porque nem tudo o que elas têm de aprender é lógico – ou tem uma lógica que esteja ao seu alcance imediato – que constroem idéias aparentemente absurdas, mas que são importantes no processo de aprendizagem.
Se o professor não sabe nada sobre o que o aluno pensa a respeito do conteúdo que quer que ele aprenda, o ensino que oferece não tem “com o que dialogar”.
Conhecimento prévio dos alunos não deve ser confundido com conteúdo já ensinado pelo professor
É importante que o professor desenvolva uma sensibilidade e uma espécie de escuta para a reflexão que as crianças fazem, supondo que atrás daquilo que pensam há coisas que têm sentido e que não são apenas fruto da ignorância.
Para tentar compreender certas representações mentais, vale a pena descrever uma experiência: num projeto de ciências, as crianças estavam montando um formigueiro. Assim que dispuseram do espaço físico, começaram a povoá-lo. Suas hipóteses partiam de sua própria experiência de vida e para elas o formigueiro era uma espécie de casa, como as casas em que moravam. Então, cada grupo procurou e montou uma família composta por uma formiga grande, uma média e formigas pequenininhas e colocou no formigueiro. E ficaram absolutamente chocadas quando as formigas se mataram umas às outras. Elas haviam misturado formigas de diferentes formigueiros e de diferentes espécies.
Se o professor não estabelece um espaço para que essas idéias apareçam, não consegue construir uma verdadeira situação de aprendizagem, pois não permite que se crie um problema sobre o qual depois seja preciso pensar.
O conhecimento prévio não costuma ser convencional e arrumadinho. Quando pedimos que os alunos estabeleçam novas relações em situações ainda não experimentadas, fica evidente que o conhecimento se constrói de forma aparentemente desorganizada e apresenta contradições que nem sempre são reconhecidas pelo aprendiz.
Um casamento entre a disponibilidade da informação externa e a possibilidade da construção interna
Perguntar à criança, quando não se entende sua produção, ajuda muito. Mesmo que o professor não compreenda suas explicações. É muito interessante também pôr duas crianças para trabalharem juntas e observar, pois elas dão explicações umas às outras que fazem sentido entre elas e se o professor olhar com cuidado, pode compreender muito do que acontece.
O avanço ocorre não porque o conhecimento brota de dentro, nem porque existe no mundo. Trata-se de uma delicada relação que considera, ao mesmo tempo, as possibilidades do sujeito e as condições do meio.
Todas as crianças sabem muitas coisas, só que umas sabem coisas diferentes das outras.
As crianças mais pobres, por exemplo, aos seis ou sete anos de idade, desenvolvem capacidades como dar banho nos irmãos, cozinhar, vender balas em cruzamentos, coisas que as crianças de classe média e alta, certamente não dão conta de fazer. Essas, como são expostas a desafios diferentes – escrever uma carta para a tia, ajudar a mãe a procurar produtos no supermercado, recontar histórias de livros – desenvolvem capacidades diferentes. Tudo depende do valor que determinadas aprendizagens assumem nas comunidades de origem de cada uma delas.
É preciso ter isso claro. As crianças vindas de um mundo cultural semelhante ao que é valorizado na escola já chegam com enormes vantagens em relação às demais.
Essa equalização de oportunidades de aprendizagem das crianças que chegam é tarefa da escola. Dependendo de como a escola desenvolve as suas práticas, pode estigmatizar a crianças, prejudicando sua auto-estima e dificultando, com isso, seu desenvolvimento com as situações de aprendizagem. Quando se constrói um modelo de déficit cultural, por exemplo, como aconteceu no Brasil alguns anos atrás – afirmando-se que os meninos pobres que entram na escola têm uma deficiência psicológica, cognitiva, intelectual, lingüista, ou seja lá que nome se queira dar – é inevitável desembocar numa pedagogia compensatória, do tipo “vamos dar a eles o que eles não têm, coitados”. Consideramos que as experiências trazidas pelas crianças pobres para a escola não são importantes, não servem para nada, devem ser deixadas de lado – a experiência valorizada pela escola é a única que importa.
Todo professor deve levar todos os seus alunos a participarem da cultura
A idéia de que as crianças não são capazes de apreciar “certas coisas” supõe que o conhecimento é uma acumulação e que, enquanto não se sabe A, não se pode entrar em contato com B. De uma perspectiva construtivista, as crianças precisam nadar na cultura ou, como se diz atualmente, navegar. Se o aluno não vive o uso da informação no cotidiano, se nunca aprendeu a lidar com textos informativos, nunca recebeu ajuda para ir aprendendo a coordenar todos os complicados procedimentos envolvidos numa pesquisa bibliográfica, como poderá fazer isso de forma autônoma e eficiente?
Não é possível formular receitas prontas para serem aplicadas a qualquer grupo de alunos
Essa visão da escola como uma linha de montagem correspondia a uma concepção de ensino e de aprendizagem – que passamos a chamar nos anos 1970, de tecnicista – métodos de ensino, seqüência de passos programados. Esse arranjo permitia o que se chamava de “ensino na medida do estudante”. Supunha-se que, embora as crianças aprendessem em ritmos diferentes, todos aprenderiam, desde que se seguissem aqueles passos programados. Esse modelo foi o responsável por uma exigência cada vez mais baixa de qualificação dos professores.
As idéias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não tem consciência delas.
Para compreender as concepções do professor é preciso analisar os seus atos em relação:
• ao conteúdo que ele espera que o aluno aprenda;
• ao processo de aprendizagem, isto é, aos caminhos pelos quais ele acredita que a aprendizagem acontece;
• à forma como ele acredita que deva ser o ensino.
A teoria empirista se expressa em um modelo de aprendizagem conhecido como de “estímulo e resposta”. Esse modelo define a aprendizagem como “a substituição de respostas erradas por respostas certas”.
A hipótese subjacente a essa concepção é a de que o aluno precisa memorizar e fixar informações – as mais simples e parciais possíveis e que devem ir se acumulando com o tempo. O modelo típico de cartilha está baseado nisso.
As cartilhas trabalham com uma concepção de língua como transcrição da fala: elas supõem a escrita como espelho da língua que se fala. Seus “textos” são construídos com a função de tornar clara (segundo o que elas supõem) essa relação de transcrição. Em geral são palavras-chaves e famílias silábicas, usadas exaustivamente.
Centrada nessa abordagem que vê a língua como pura fonologia, a cartilha introduz o aluno no mundo da escrita apresentando-lhe um texto que, na verdade, é apenas um agregado de frases desconectadas.
Exemplo: produção coletiva de texto na lousa – O Sapo
O sapo é bom.
O sapo come inseto
O sapo é feio.
O sapo vive na água e na terra.
Ele solta um líquido pela espinha.
O sapo é verde.
Cada enunciado é tratado como se fosse um parágrafo independente. Sem coesão textual, sem coerência.
Como a metodologia de ensino expressa nas cartilhas concebe os caminhos pelos quais a aprendizagem acontece.
Na concepção empirista o conhecimento está “fora” do sujeito e é interiorizada através dos sentidos, ativados pela ação física e perceptual. O sujeito da aprendizagem seria “vazio” na sua origem, sendo “preenchido” pelas experiências que tem com o mundo. Criticando essa idéia de um ensino que se “deposita” na mente do aluno, Paulo Freire usava uma metáfora – “educação bancária” – para falar de uma escola em que se pretende “sacar” exatamente o que se “depositou” na cabeça do aluno.
Nessa concepção, o aprendiz é alguém que vai juntando informações. Ele aprende o ba, be, bi, bo, bu, depois o ma, me, mi, mo, mu e supõe-se que em algum momento ele tenha um “estalo”e comece a perceber o que estas sílabas têm em comum. Na idéia do “estalo”, os professores que convivem com alunos reais acabam encontrando a resposta para certas ocorrências aparentemente inexplicáveis, como por exemplo, por que alguns entendem o sistema logo que aprendem algumas poucas famílias silábicas enquanto outros chegam ao z de zabumba sem compreendê-lo.
O processo de ensino é caracterizado por um investimento na cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização da memória de curto prazo. Essa forma de trabalhar está relacionada à crença de que primeiro os meninos têm de aprender a ler e a escrever dentro do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para depois adquirir uma leitura compreensiva.
Para mudar é preciso reconstruir toda a prática a partir de um novo paradigma teórico
Na perspectiva construtivista, o conhecimento não é concebido como uma cópia do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupõe uma atividade, por parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes.
Se não houver por parte do professor suficiente compreensão das questões que dão sustentação a esta proposta, corre o risco grave de ficar “mesclando”, como se costuma dizer.
O equívoco mais comum é pensar que alguns conteúdos se constroem e outros não. Em outros casos o modelo empirista fica intocado e as idéias que as crianças constroem em seu processo de aprendizagem são distorcidas a ponto de o professor vê-las como conteúdo a ser ensinado. Um exemplo disso são os professores que passaram a ensinar seus alunos a escrever silabicamente.
Outro tipo de entendimento distorcido, influenciado por práticas espontaneístas, refere-se aos professores que entenderam que a intervenção pedagógica seria, então, desnecessária. Se é o aluno quem vai construir o conhecimento, o que os professores teriam a fazer dentro da sala de aula? E passaram a não fazer nada.
Conteúdos escolares são objetos de conhecimento complexos, que devem ser dados a conhecer, aos alunos, por inteiro.
Cabe ao professor criar situações que permitam aos alunos vivenciar os usos sociais que se faz da escrita, as características dos diferentes gêneros textuais, a linguagem adequada a diferentes contextos comunicativos, além do sistema pelo qual a língua é grafada, o sistema alfabético. Qualquer um pode aprender muito sobre a língua escrita mesmo sem poder ler e escrever autonomamente. O aprendiz é um sujeito, protagonista do seu próprio processo de aprendizagem, alguém que vai produzir a transformação que converte informação em conhecimento próprio.
Afirmar que o conhecimento prévio é base da aprendizagem não é defender pré-requisitos.
Para aprender alguma coisa é preciso saber alguma coisa – diz o modelo construtivista. Ninguém conseguirá aprender alguma coisa se não tiver como reconhecer aquilo como algo apreensível. O conhecimento não é gerado do nada, é uma permanente transformação a partir do conhecimento que já existe. Isso não significa a crença ou defesa de pré-requisitos. Também esse tipo de conhecimento se confunde com a matéria ensinada pelo professor.
Não informar nem corrigir significa abandonar o aluno à própria sorte.
Quando uma criança entra na escola ainda não alfabetizada, tanto ela quanto o professor sabem que ela não sabe ler nem escrever. Ao propor que a criança se arrisque a escrever do jeito que imagina, o que o professor na verdade está propondo é uma atividade baseada na capacidade infantil de jogar, de fazer de conta. O professor deve então, usar tudo o que ele sabe sobre as hipóteses que as crianças constroem sobre a escrita para poder, interpretando o que o aluno escreveu, ajudá-lo a avançar. Dentro desse contrato, quem “faz de conta” é a criança. O papel do professor é delicado. A ele cabe organizar a situação de aprendizagem de forma a oferecer informação adequada. Sua função é observar a ação das crianças, acolher ou problematizar suas produções, intervindo sempre que achar que pode fazer a reflexão dos alunos sobre a escrita avançar.
Como fazer o conhecimento do aluno avançar
Não existe um processo único de “ensino-aprendizagem”, como muitas vezes se diz, mas dois processos distintos. São dois processos que se comunicam, mas não se confundem.
É equivocada a expectativa de que o aluno poderá receber qualquer ensinamento que o professor lhe transmita exatamente como ele transmite. Não é o processo de aprendizagem que deve se adaptar ao de ensino, mas o processo de ensino é que tem de se adaptar ao de aprendizagem. Ou melhor: o processo de ensino deve dialogar com o de aprendizagem.
Para terem valor pedagógico, serem boas situações de aprendizagem, as atividades propostas devem reunir algumas condições, respeitar alguns princípios. Boas situações de aprendizagem são aquelas em que:
• os alunos precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo que se quer ensinar;
• os alunos têm problemas a resolver e decisões a tomar em função do que se propõem produzir;
• a organização da tarefa pelo professor garante a máxima circulação de informação possível;
• o conteúdo trabalhado mantém suas características de objeto sociocultural real, sem se transformar em objeto escolar vazio de significado social.
Nem sempre é possível organizar as atividades escolares considerando simultaneamente esses quatro pressupostos.
Alunos põem em jogo tudo o que sabem, têm problemas a resolver e decisões a tomar.
Construir situações que se orientem por esses pressupostos exige do professor competência para estabelecer os desafios adequados para seus alunos, que são os que ficam na interseção entre o difícil e o possível: atividades que representem possibilidades difíceis, mas coloquem dificuldades possíveis.
A valorização dos saberes construídos fora das situações escolares é condição para que os alunos tomem consciência do quê e de quanto sabem.
A organização da tarefa garante a máxima circulação de informação possível
O conhecimento avança quando o aprendiz enfrenta questões sobre as quais ainda não havia parado para pensar. Quando observa como os outros a resolvem e tenta entender a solução que os outros dão.
A preocupação em evitar o contato do aluno com a resposta errada é uma marca do modelo empirista de ensino e está relacionada à idéia de que ela vai se fixar em sua memória.
O conteúdo trabalhado deve manter suas características de objeto sociocultural real.
A idéia de que para aprender na escola era necessário que os materiais fossem produzidos especialmente para esse uso escolar criou uma espécie de muro que não deixava entrar na escola nada que fosse do mundo externo.
Um exemplo da invenção da escola: a redação escolar, um gênero que não existe em nenhum outro lugar além da escola. Trata-se, em geral, de um texto sem destinatário, que nunca será lido de fato, a não ser pelo professor, com o objetivo exclusivo de corrigi-lo.
Quando corrigir, quando não corrigir.
O professor desenvolve dois tipos de ação pedagógica: o planejamento da situação de aprendizagem e a intervenção propriamente dita.
Uma intervenção clássica é a correção. Não é a única intervenção possível, nem a mais importante, mas é a que mais tem preocupado os professores.
Para muitos professores ainda, aprender é substituir respostas erradas por respostas certas.
Pode-se pensar a correção de muitas formas. A tradição escolar normalmente vê a correção que o professor realiza fora da sala de aula, longe dos olhos dos alunos, como a principal. Compete-lhe marcar no trabalho realizado aquilo que o aluno errou, para que o erro seja corrigido e não fique presente no produto do trabalho do aluno. Atrás dessa proposta existe a convicção de que se o erro tiver permanência – e a palavra escrita é certamente permanente – ele poderá fixar-se na memória dos alunos. Essa forma de lidar com o erro responde a uma concepção que supõe a percepção e a memória como núcleos da aprendizagem.
Outra visão de correção é a informativa. Ela carrega a idéia de que a correção deve informar o aluno e ser feita dentro da situação de aprendizagem.
Os erros devem ser corrigidos no momento certo. Que nem sempre é o momento em que foram cometidos.
A idéia do erro construtivo abriu um mundo desconhecido que fascinou a muito de nós, educadores. Passamos a viver um certo encantamento com os erros.Nos tornamos leitoras entusiastas de textos silábicos. Quando as crianças começavam a escrever alfabeticamente era mais lindo ainda. Até aí tudo bem, mas as crianças mais velhas e alfabetizadas escreverem errado nunca alegrou ninguém.
A correção se define pelo momento da aprendizagem em que os alunos estão. Se a criança ainda nem escreve alfabeticamente, e para escrever cachorro usa menos letras do que precisa – por exemplo, KXO -, deve o professor insistir com ela que não é com x, mas com ch, ou que o K nem existe no nosso alfabeto e ela deveria escrever com CA? Certamente que não, pois isso não faz sentido ainda para ela.
Quando, num outro momento, um aluno escreve CAXORO, o professor precisa intervir na questão ortográfica e considerar cuidadosamente a melhor forma de fazer isso. Se naquele momento o menino está escrevendo uma história, e articulando o fluxo das idéias, interrompê-lo para corrigir a ortografia não faz sentido, a não ser que ele mesmo pergunte.
Assim, entre o “tudo pode” e o “nada pode”, entre o “não se deve deixar nem a sombra do erro” e o “agora não é mais para corrigir” existe um enorme espaço para a atuação inteligente do professor.
Os alunos sabem o que achamos importante que eles aprendam, mesmo que não falemos nada.
Se um professor enfatiza que escrever corretamente é importante, mas não dedica muito tempo escolar às atividades de reflexão sobre a ortografia, estará mostrando – na prática e com muito mais força – que não é tão importante assim o que havia recomendado.Da mesma forma, quando aceita que o aluno escreva errado, palavras já bem conhecidas, também estará concordando com essa maneira de escrever.
A necessidade e os bons usos da avaliação
A necessidade de avaliar no início do processo é característica da relação entre ensino e aprendizagem vistos numa ótica construtivista. Nela, a informação que o aluno recebeu anteriormente como ensino não define o conhecimento prévio, porque esse constitui toda a bagagem de saberes que o aluno tem oriundos de diferentes fontes e que são pertinentes para a nova aprendizagem proposta. Portanto, ter conhecimento de quais foram os conteúdos ensinados não permite identificar o que ele sabe: nem sempre ele aprende o que foi ensinado, e como o conhecimento não se organiza de forma linear, as coisas não funcionam tão simplesmente.
A avaliação da aprendizagem é também a avaliação do trabalho do professor.
Avaliar a aprendizagem do aluno é também avaliar a intervenção do professor, já que o ensino deve ser planejado e replanejado em função das aprendizagens conquistadas ou não.
Se a maioria da classe vai bem e alguns não, estes devem receber ajuda pedagógica.
Existem diversas maneiras de atender os alunos que apresentam dificuldades:
• organizar na escola grupos de apoio pedagógico, com reagrupamento de turmas em alguns dias da semana, dentro ou fora do horário e aula;
• explicitar as bases do contrato didático que regem os trabalhos de apoio pedagógico;
• possibilitar mais de um olhar sobre as produções / dificuldades das crianças;
• preparar atividades didáticas para a classe, considerando a heterogeneidade do grupo;
• organizar um banco de propostas didáticas que facilitem o planejamento;
• analisar produções, compartilhar preocupações e dúvidas;
Um território delicado: como os alunos se vêem e se sentem como estudantes
Algumas explicações para as dificuldades:
• não compreensão conceitual de um determinado conteúdo;
• procedimentos inadequados, embora tenha compreendido os principais conceitos relacionados ao que não sabe fazer (aluno faz subtrações no seu dia-a-dia, mas tem problemas com a técnica operatória);
• baixa auto-estima – os alunos sentem quando não acreditamos que podem aprender;
O que fazer com os alunos que chegam ao final do período sem aprender o que a escola pretendia
É muito forte ainda a nossa tradição de avaliação centrada exclusivamente no propósito de quantificar a aprendizagem através de notas ou conceitos. Um aluno que obtém nota 9 em uma determinada área não necessariamente aprendeu 90% do conteúdo ensinado, assim como que obtém conceito C não necessariamente atingiu os objetivos essenciais previstos.
Perguntas essenciais:
• que decisão pode beneficiar a escolaridade do aluno e a ele próprio?
• por que as crianças fazem o que fazem?
O desenvolvimento profissional permanente
Algumas exigências:
• dialogar com a atividade de aprendizagem do aluno;
• assumir um alto grau de autonomia;
• perceber a mudança do seu papel: 1970 – treinamento; 1980 – formação ou capacitação em serviço (compensar as deficiências e formação); papel atual – criar ou adaptar boas situações de aprendizagem, adequadas aos alunos reais, cujos percursos ele precisa conhecer.
Mesmo que a formação inicial se transforme, não abolirá a exigência de um trabalho permanente de estudo e reflexão.
As idéias educacionais estão em produção ininterrupta, bem como a realidade em que o educador atua, que também se transforma continuamente.
Devemos olhar para a prática de sala de aula como um objeto sobre o qual se pode pensar
O trabalho de tematização é uma análise que parte da prática documentada para explicitar as hipóteses didáticas subjacentes. Chamamos a este trabalho de tematização da prática porque se trata de olhar para a prática de sala de aula como um objeto sobre o qual se pode pensar.
Para ser tematizada, a prática do professor precisa estar documentada.
É importante que o professor registre seu trabalho por escrito, porque isso o levará a construir uma prática de reflexão.
Escrever sobre alguma coisa faz com que se construa uma experiência de reflexão organizada, produzindo para nós mesmos um conhecimento mais aprofundado sobre a prática, sobre as nossas crenças, sobre o que sabemos e o que não sabemos.
Todas as escolas deveriam produzir coletivamente um documento para difundir as características de seu projeto pedagógico
Dois instrumentos são particularmente importantes:
• a documentação da prática da sala de aula e a reflexão coletiva da escola em torno dela;
• a comunicação do processo de elaboração desse projeto educacional coletivo por escrito.
Se uma sociedade quer um ensino com qualidade terá de assumir que isso implica um professor mais bem qualificado e remunerado
É preciso que a sociedade tome consciência de que o professor é um profissional indispensável, com um nível de qualificação superior ao que se imaginava. Se a sociedade quer uma escola de qualidade – e hoje ela quer – vai ter de assumir que isso requer um perfil de professor diferente daquele que vinha sendo proposto, o que implica um salário bastante diferenciado.
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